Luiz Ruffato
Há várias narrativas de aparições, a maior parte delas simples anedotas, nascidas ora de notórios casos de charlatanismo, ora de mentes claramente impressionáveis. Mas há outras, poucas, contadas por pessoas acima de qualquer suspeita, que sempre me perturbaram.
Por conta de um festival literário, hospedei-me
recentemente no Grande Hotel Tauá, em Araxá, no Triângulo Mineiro, uma
magnífica e suntuosa e decadente construção, que, iniciada em 1938, teve
suas obras concluídas apenas seis anos depois.
Com projeto paisagístico
de Burle Marx e arquitetônico de Luis Signorelli, impressiona com seu
estilo neoclássico, imponente e arrebatador.
Procurado pela alta
burguesia brasileira, durante boa parte do século XX por causa de suas
fontes termais, hoje recebe famílias de classe média em busca de lazer e
seus inúmeros e amplos salões servem de cenário para cerimônias de
casamentos, festas de formatura e reuniões de empresas.
Entre os vários convidados do festival, estava Mary del
Priore, que vem desenvolvendo uma importantíssima reflexão sobre nosso
passado, por meio de incursões a temas em geral menosprezados pelos
historiadores – ou seja, está revelando um retrato mais próximo da
realidade, quando aborda questões como a sexualidade e o erotismo em
Histórias íntimas, ou descreve a trajetória feminina brasileira em
Histórias e conversas de mulher. Mary del Priore estava em Araxá para
divulgar seu mais recente livro, A história do sobrenatural e do
espiritismo, um excelente estudo sobre nossas crenças nas coisas do
mundo invisível e suas implicações não apenas sociais como também
políticas – basta lembrar que, após participar da luta pelo fim da
escravidão, kardecistas e simpatizantes das religiões afro-brasileiras
foram duramente perseguidos após a Proclamação da República.
Ouvi sua palestra com atenção e me lembrei de várias
narrativas escutadas neste meio século de vida, a maior parte delas
simples anedotas, nascidas ora de notórios casos de charlatanismo, ora
de mentes claramente impressionáveis.
Mas há outras, poucas, contadas
por pessoas acima de qualquer suspeita, que sempre me perturbaram. Uma
dessas, compartilhei num café com o organizador do Fliaraxá, Afonso
Borges, que vem alinhavando contos sobre fantasmas e mistérios no jornal
Hoje em Dia, de Belo Horizonte. Ei-la:
Durante uns cinco anos, apanhava pela manhã o mesmo táxi
para ir da minha casa até o prédio do jornal O Estado de S. Paulo, onde
trabalhava. Caminhava a pé duas quadras, tomava um expresso na padaria e
entrava no carro, que me esperava pontualmente na esquina.
Seu M., o
motorista, um homem de seus setenta anos, sério, calado e melancólico,
conduzia profissional o veículo branco por entre o caos das ruas
cinzentas de São Paulo. Em geral, mantinha o rádio ligado, adivinhando
que, atento ao noticiário, eu antecipava a paisagem do mundo que se
desenharia ao longo do dia. Ele me tratava com educação, mas,
respeitoso, por acreditar que, sendo jornalista, deveria ser alguém
importante, conservava-se distante.
Um dia, no entanto, era outubro, madrugadas insuportáveis
de calor intenso, seu M., assim que fechei a porta do automóvel e cruzei
sobre o peito o cinto de segurança, disse, contrariando sua natural
mudez: “Luiz, vou te revelar uma coisa, um negócio que achei que tinha
até esquecido, mas que vem me amofinando, não me deixa nem dormir
mais... Quem sabe se colocar pra fora me desembaraço dessa aflição...”
Mirei seus olhos e percebi a angústia em que naufragavam suas noites de
pesadelos. “Sei que você é uma pessoa decente e não vai debochar de
mim”, concluiu, engatando a primeira marcha.
“Comecei minha vida como motorista de caminhão,
transportando mercadorias entre Recife e São Paulo, no tempo em que a
Rio-Bahia era uma estradinha de chão de batido, ou seja, estamos falando
da década de cinquenta. Eu dirigia um cara-chata e tentava cumprir os
prazos que a firma contratava, muito embora às vezes isso se tornasse
impossível, principalmente na estação das chuvas. Certa feita, subindo
uma morraria enjoada que tem perto de Muriaé, o barulho do motor
roncando dentro da cabeça, avistei um companheiro pedindo carona. Sem
poder parar, fiz um sinal e ele pulou no estribo.
Alcançado o topo do
morro, estacionei no acostamento, abri a porta e ele entrou na cabine.
Simpático, agradeceu, explicou que tinha tido um problema com seu GMC e
perguntou se eu podia deixá-lo no posto de gasolina que havia lá
embaixo, no pé da serra.
O fenemê deslizava feliz pela estrada, enquanto
ele falava com carinho da mulher e do filho, e, suspiroso, fazia planos
para o futuro, ampliar a casa, comprar um barzinho, já estava de olho
em oportunidades, deixar de viajar, profissão muito perigosa, a nossa,
arrematava. Enfim, ao descer, agradeceu novamente e me convidou para um
dia procurá-lo em Realeza, uma pequena aglomeração a meio caminho entre
Muriaé e Carangola. Não me deu endereço, mas referências precisas para
encontrar sua casa. Só quando me encontrava longe, me lembrei que não
havia perguntado seu nome.
Creio ter transcorrido um mês, se tanto, quando, voltando
para Recife, notei um problema no freio-motor da carreta. Parei numa
oficina mecânica em Leopoldina e perdi umas três horas até que
realizassem o conserto, de tal maneira que já a tarde caía quando me
deparei com a placa indicando Realeza a cinco quilômetros. Recordei de
meu companheiro e, como não iria mais muito longe àquela hora, não
gostava de dirigir no breu da noite, resolvi visitá-lo. Na cidade
pequena, de pouco arruamento, não foi difícil localizar a casa de
paredes azuis e janelas vermelhas, à sombra de um enorme abacateiro.
Não
havia caminhão algum no meio-fio, e deduzi que ele deveria estar em
trânsito. Ainda assim, bati palmas à varanda e um menino mirrado, de
calças curtas e camiseta amassada, surgiu por um beco lateral e,
assustado, desapareceu. Logo em seguida, uma mulher, jovem ainda, abriu a
porta e, enxugando as mãos no avental, perguntou, acanhada, o que
desejava.
Então, expliquei que havia conhecido seu marido e que, de
passagem, queria apenas deixar um abraço. Ela respondeu, cabisbaixa, a
voz apagada, Desculpe, mas o Jaílson morreu... Perplexo, sem saber o que
fazer, acendi um cigarro. Quando foi isso?, perguntei, ansioso.
Segurando o choro, ela falou que ele tinha sofrido um acidente, cerca de
um mês antes.
Acidente? Onde?, perguntei, cada vez mais aflito. Numa
serra, perto de Muriaé, o caminhão despencou perambeira abaixo... Só foi
encontrado dois dias depois, coitado, alguém avisou num posto de
gasolina no pé da serra... Uma tragédia, meu deus, como vou criar meu
filho agora? Zonzeei...
Em pânico, perguntei se ela possuía um retrato
do Jaílson. Ela estranhou, mas comovida me levou à sala, pequena e
cheirando a mofo, e mostrou, sobre a televisão, a fotografia do marido,
engalanado dentro de um terno, sorridente e simpático como eu o havia
visto naquela tarde, quando já devia estar morto há pelo menos dois
dias...”
“Se conto isso pra você”, ele concluiu, “é porque, depois
de mais de quarenta anos, Jaílson voltou a frequentar meus pensamentos.
Fui num centro espírita, me disseram pra rezar pela alma dele, mas
ninguém me tira da cabeça que ele está é me avisando que meu fim está
chegando”. Procurei dissuadi-lo daquelas ideias sinistras, sem sucesso.
Seis meses mais tarde, mudei para o outro lado do bairro, perdi seu M.
de vista.
Cerca de um ano depois, estive no meu antigo prédio recolhendo
restos de correspondências e soube que ele havia morrido há pouco, em
um acidente na descida para Santos.
Terminada a conversa, recebida com interesse por Afonso
Borges, me encontrei com o poeta e cronista Fabrício Carpinejar, meu
amigo de longa caminhada, que me convidou para uma partida de sinuca.
Muito ruins, ambos, rapidamente perdemos o encanto pelo jogo e nos
dirigimos cada qual para seu quarto. Antes, no entanto, de entrarmos no
elevador, Fabrício comentou que ao chegar, de madrugada, perdera-se nos
longos e labirínticos corredores do Grande Hotel Tauá, famoso também por
suas histórias de aparições, vultos e gemidos. Perguntei se ele havia
visto ou ouvido algo estranho, e ele, após vacilar um pouco, respondeu:
Não que eu tivesse percebido...
Fonte: El País
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