sábado, 24 de março de 2012

Artefatos mostram sofisticação de nômades da antiguidade


Os gregos antigos tinham uma palavra para os povos que viviam nas selvagens estepes eurasianas, do Mar Negro à fronteira da China. O termo era "nômades", o que significa "vaguear em busca de pastagens".

Eram povos em constante movimento e, frequentemente, combatentes temíveis a cavalo. Representavam, essencialmente, "o outro" diante das civilizações agrícolas e cada vez mais urbanizadas que emergiram no primeiro milênio antes de Cristo.

Ninguém sabe que nome os nômades davam a si mesmos porque eles não desenvolveram escrita. Para seus vizinhos alfabetizados, eram os onipresentes e misteriosos citas ou saka (dois nomes que talvez designem o mesmo povo).

De qualquer forma, os nômades eram alvo de desdém (como o outro costuma ser), exemplos de um estágio intermediário ou inacabado de evolução cultural.

Haviam subido um degrau a mais que os caçadores-coletores, mas ainda ficavam bem aquém de uma vida assentada, de plantio e colheita, ou da vida urbana, social e economicamente mais complexa.

Mas os arqueólogos nos últimos anos deixaram de lado essa mentalidade e romperam alguns dos vastos silêncios que pendem sobre o passado da Ásia Central.


EQUÍVOCOS


Suas escavações põem fim à ideia de que sociedades nômades eram menos desenvolvidas que muitas das sociedades sedentárias.

Deuses tumulares que remontam ao século 8º a.C. demonstram que esses povos estavam prosperando por meio de uma estratégia pastoral móvel, mantendo redes de intercâmbio cultural (nem sempre pacífico) com seus poderosos vizinhos estrangeiros, a exemplo dos persas e posteriormente dos chineses.

Algumas das descobertas mais esclarecedoras que sustentam essa revisão de imagem provêm dos montes funerários conhecidos como kurgan que estão sendo escavados nas montanhas Altai, leste do Cazaquistão, perto das fronteiras da Rússia e da China.



Pela qualidade e sofisticação técnica dos artefatos e pelo número de cavalos sacrificados, os arqueólogos concluíram que os kurgan abrigam restos de membros da elite da sociedade, no final do século 4º a.C. e começo do século 3º a.C.

Por escambo, roubo ou como tributos, eles haviam adquirido bens de prestígio, e com o tempo os artesãos da civilização adaptaram suas formas e as incluíram em seu impressionante repertório artístico.

Quase metade dos 250 objetos que formam a exposição "Nomads and Networks: The Ancient Art and Culture of Kazakhstan" provém dos montes funerários de um povo conhecido como "cultura Pazyryk".

O material, boa parte do qual exibido pela primeira vez ao público, pode ser visto no Instituto para o Estudo do Mundo Antigo, Universidade de Nova York, por empréstimo dos quatro museus nacionais cazaques.

Dois exemplos discretamente especulares são 13 peças de ouro para adorno pessoal, conhecidas como tesouro Zhalauli, representando imagens de animais fantasiosos; e o diadema wusun, uma peça de ouro com pedras semipreciosas escavada em um monte funerário no vale de Kargaly, sul do Cazaquistão.


"SUBDESENVOLVIDOS"


O diadema combina características nômades e chinesas, incluindo animais compostos ao estilo cita-siberiano, e um dragão dotado de chifres flutuando diante de um panorama de nuvens.

Os artefatos escavados em kurgan explorados recentemente incluem moedas de ouro; peças entalhadas de madeira e chifre; uma sela de couro; um travesseiro de couro para a cabeça do morto; e tecidos, cerâmicas e bronzes.

Os arqueólogos dizem que a abundância de bens de prestígio nos montes funerários demonstra a forte diferenciação social da sociedade nômade.

Jennifer Chi, curadora chefe do instituto, escreve no catálogo da exposição, publicado pela Princeton University Press, que a coleção retrata "um mundo de grupos nômades que, longe de serem subdesenvolvidos, combinavam padrões distintos de mobilidade e práticas rituais aparentemente sofisticadas, que expressavam conexão estreita com o mundo natural, práticas complexas de sepultamento, e redes e contatos estabelecidos com o mundo externo".

Em uma caminhada pela exposição, a dra. Chi mostrou os tesouros nômades e comentou que "a percepção popular desses povos como desprovidos de rumo não leva em conta as descobertas dos estudos recentes".

A escavação dos kurgan na região de Altai, perto da aldeia de Berel, foi iniciada em 1998 por uma equipe liderada por Zainolla Samashev, diretor do Instituto Margulan de Arqueologia, em um terraço natural por sobre o rio Bukhtarma.

Os russos haviam realizado algumas escavações no local no século 19. Mas as quatro longas linhas de kurgan, com pelo menos 70 montes claramente visíveis, parecia requerer exploração mais sistemática.

Dos 24 kurgan investigados até o momento em Berel, disse o Dr. Samashov em entrevista, os dois primeiros a serem escavados foram os maiores.

Os montes, com diâmetro de cerca de 30 metros, se erguem de três a cinco metros da planície que os cerca. O poço central tem quatro metros de profundidade, e conta com revestimento de troncos.

Na base do kurgan 11, ele diz, um arranjo de grandes pedras permite a entrada de ar frio e restringe sua saída.

Esses e outros aspectos físicos dos montes criaram condições de "permafrost" (congelamento permanente), o que preservou boa parte da matéria orgânica nos túmulos -ainda que saques no passado distante tenham prejudicado as condições de permafrost.

Ainda assim, ossos, cabelos, unhas e carne sobreviveram em volume suficiente para permitir a descoberta de que alguns dos corpos eram tatuados e foram embalsamados. O cabelo dos homens enterrados foi cortado rente ao crânio, e eles usavam perucas.

O curador cazaque dos artefatos, Altynbekov Krym, disse que os restos contidos em diversos kurgan são um desafio.

"Estava tudo misturado, e não demorava a mofar quando exposto", disse, acrescentando que "foram precisos seis anos de experiências para criar uma nova metodologia de limpeza e preservação do material".

O dr. Samashev disse que sua equipe internacional, que devido ao clima só pode trabalhar no verão, havia escavado ao menos um kurgan ao ano. Diversos serviram ao sepultamento de figuras menores.

Estes em geral abrigavam os restos de um homem e um cavalo. O Kurgan 11 servia de túmulo a um homem que aparentemente teve morte violenta na casa dos 30 anos; uma mulher que morreu depois dele; e 13 cavalos, recobertos de capas cerimoniais, como se tivessem sido sacrificados.

Tamanho número de cavalos, encontrados em uma seção separada do poço de sepultamento, indica que o homem tinha posição social elevada.

As selas de couro recobertas de tecido bordado sobreviveram, bem como rédeas e outras peças de arreios decoradas com placas que retratam animais reais e míticos -como grifos, com corpo de tigre ou leão mas asas e cabeças de pássaro.

Soren Stark, professor assistente de arte e arqueologia centro asiática no instituto, disse que as redes de contato com o mundo exterior eram cruciais para a estrutura política do povo que ocupava as montanhas Altai e as montanhas Tianshan.

No nível mais primário, eles se moviam a cavalo e camelo temporada após temporada, criando ovelhas e cabras que lhes forneciam leite, lã e couro, ingredientes básicos para uma economia pastoral.

Para aproveitar ao máximo os gramados que produzem apenas sazonalmente, viajavam em pequenos grupos familiares para prados montanheses, no verão, voltando às planícies no inverno. O povo nômade se deslocava bastante para evitar esgotar os recursos de pastagem locais.

Em seus acampamentos de outono e inverno, os pastores se reuniam em grandes grupos e participavam de caçadas e rituais tribais.

A exposição inclui caldeirões de couro, presumivelmente para o preparo de banquetes comunitários, entre os quais um decorado pela figura de um homem, segurando uma taça e olhando para um cavalo; a imagem intriga os especialistas. Igualmente enigmáticos são símbolos entalhados em rochas que talvez indiquem lugares sagrados.

Dos acampamentos, grupos de guerreiros montados partiam para atacar assentamentos, tanto para suplementar seus modestos recursos como para obter os produtos de luxo que os líderes cobiçavam.


CONTATOS


O dr. Stark diz que a elite nômade via esses tesouros como necessidades, a serem exibidas e distribuídas entre os mais importantes seguidores a fim de "criar e sustentar seu poder político".

Com o alargamento de suas redes, influências estrangeiras, especialmente persas, começaram a surgir nos artefatos nômades dos século 6º a.C. a 4º a.C.

O grifo, por exemplo, se originou no Ocidente via Império Persa, centrado no atual Irã; os nômades o modificaram para ter duas cabeças de ave de rapina, encimadas por chifres de alce.

Começando no século 3º a.C., produtos de luxo chineses em geral associados à dinastia Han, como o diadema wusun, começam a aparecer nos montes funerários.

De acordo com relatos chineses, os nômades wusun podem ter fomentado o contato entre os nômades do centro da Ásia e a China Han, que na época estava se expandindo rumo ao oeste e precisava de cavalos para suas campanhas contra rivais nas fronteiras.

Apesar dessas redes de contato, os nômades do primeiro milênio antes de Cristo sempre aplicavam toques imaginosos aos artefatos estrangeiros adquiridos.

A dra. Chi diz que os nômades transformavam os animais fantásticos de outras culturas em criaturas ainda mais fantásticas: javalis encurvados em forma de lágrima e grifos que parecem mudar de forma em uma mesma imagem.

Por meio desses símbolos enigmáticos uma cultura pré-escrita comunicava sua visão de mundo, de uma terra vasta e pouco generosa que os nômades jamais conseguiram domar --não que esses povos permanentemente a cavalo tivessem algum interesse em se assentar, claro.

"Nomads and Networks" fica até 5 de junho no Institute for the Study of the Ancient World, 15 East 84th Street, em Manhattan. Informações no site isaw.nyu.edu.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


Fonte: Folha.com

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