Em cima (à esquerda), uma das mós analisadas; em baixo, flor e folhas da cabaça-de-cobra-chinesa Cortesia de Jiming Shi
No auge da última glaciação, quando a carne
escasseou, caçadores-recoletores do Norte da China começaram a
processar a flora local.
A agricultura tal como a conhecemos surgiu há uns 10 mil anos. Mas um
estudo realizado no Norte da China por investigadores norte-americanos e
chineses - e agora publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences
(PNAS) - faz recuar em 13 mil anos os primórdios do processamento
intensivo de espécies vegetais, para fins alimentares, pelos seres
humanos que lá viviam.
Um espetacular alargamento da dieta, que terá
permitido a sobrevivência dessas populações durante a última glaciação.
A última Idade do Gelo decorreu há entre 100 mil e 10 mil anos a.C.. Mas houve um período, há uns 22 mil anos, durante o qual as placas de gelo que cobriam parte da Terra atingiram a sua máxima extensão.
E foi
nessa altura, quando os recursos da caça e da recoleção se tornaram
muito escassos, que "os alimentos vegetais poderão ter adquirido cada
vez mais importância na dieta humana", escrevem Li Liu, investigadora da
Universidade de Stanford (EUA), e colegas da Academia chinesa de
Ciências Sociais em Pequim e da Universidade de Shanxi.
A China é considerada como a região do mundo onde foram inicialmente domesticadas certas variedades de milhete (também conhecido como milho-painço ou milho-miúdo), um tipo de cereais cultivado hoje em todo o mundo.
E estudos anteriores já tinham mostrado que, na localidade de
Shizitan, sítio arqueológico do vale do rio Qingshui, no Norte do país, a
cultura e a domesticação do milhete datavam de há dez mil anos.
A equipe de Li Liu recuou ainda mais no tempo, analisando três pedras encontradas naquele sítio arqueológico e utilizadas como mós há 19.500 a 23 mil anos.
E os cientistas constataram que o desgaste das pedras e os
resíduos vegetais à sua superfície indicavam que elas tinham sido
usadas para processar uma grande variedade de plantas locais, "entre as
quais o "antepassado" do milhete domesticado", disse ao PÚBLICO Li Liu.
Estes resultados sugerem portanto que esses "antepassados" do milhete já
eram utilizados como alimentos, pelos caçadores-recoletores da região,
milênios anos antes da domesticação deste cereal.
"Estes cientistas poderão ter retraçado a origem da agricultura no Norte da China, onde grupos humanos sobreviveram à última Idade do Gelo graças à exploração de sementes de ervas silvestres, de feijões e de plantas tuberosas", diz por seu lado a PNAS em comunicado.
Os cientistas
encontraram ainda, nas mós, resíduos de inhame e de uma planta de
raízes tuberosas, chamada cabaça-de-cobra-chinesa (Trichosanthes kirilowii).
Hoje em dia, esta planta tem aplicações na medicina tradicional
chinesa, "sendo consumida como alimento apenas nos períodos de fome",
lê-se ainda no artigo.
A descoberta dos resíduos de cabaça-de-cobra-chinesa é particularmente significativa, na medida em que, para ser apta para consumo humano, essa raiz precisa de ser moída - e que a seguir, a substância moída precisa, por sua vez, de ser "lavada e filtrada, de forma a obter uma farinha muito fina", explica-nos ainda Li Liu. Daí a conclusão dos autores: "Ao mostrar que certas raízes tuberosas, tais como a da cabaça-de-cobra-chinesa, que requerem moagem e lavagem, já eram consumidas há 23 mil anos, o nosso estudo sugere que este tipo de técnicas de processamento alimentar foi desenvolvido muito mais cedo" do que a agricultura moderna.
O fenômeno de diversificação alimentar não se verificou apenas na China. "Este evento é comparável ao que aconteceu no Médio Oriente, onde "também foram encontrados resíduos de trigo e de cevada selvagens em mós com 23 mil anos", frisa Li Liu.
O que sugere que o desenvolvimento
da agricultura moderna foi um fenômeno evolutivo global, que aconteceu
em simultâneo em várias partes do mundo.
Os cientistas pensam que o fato de os caçadores-recoletores de Shizitan "terem começado a explorar intensivamente" a flora local muito antes do advento da agricultura moderna "tê-los-á ajudado a adquirir os conhecimentos necessários sobre as propriedades daquelas plantas, o que acabou por conduzir à domesticação do milhete e à utilização medicinal das tuberosas".
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