A possibilidade de cruzamento entre humanos e outros primatas tem sido discutida tanto na ficção quanto na literatura científica há séculos.
A possibilidade de cruzar a fronteira que separa os humanos das outras espécies é um campo fértil para diferentes pontos de vista e viola diversos tabus culturais e éticos.
O interesse nesse assunto sempre acompanha certo medo e aversão. De certa forma, essa reação faz sentido.
Afinal, estamos aprendendo que a relação próxima de humanos com outros animais pode favorecer a transmissão de microrganismos fatais à espécie humana, como no caso do vírus causador da Aids, o HIV.
Porém, sabemos dessa conseqüência hoje em dia apenas. No passado, experimentos para estudar um possível híbrido entre humanos e chimpanzés foram propostos. O que pouca gente sabe é que, de fato, ocorreram, e com consentimento da sociedade.
Estamos em fevereiro de 1926, quando o governo da então União Soviética, com o apoio de sua Academia de Ciências, enviou uma curiosa expedição para a África.
O objetivo era inseminar artificialmente chimpanzés fêmeas com esperma humano e obter, caso viável, um híbrido das duas espécies. O líder dessa expedição era o respeitado professor russo Ilya Ivanov.
Ivanov era um nome de peso na área de reprodução no começo do século (1907). Com seus experimentos de inseminação artificial (um sacrilégio na época), conseguiu exterminar a idéia de que o ato sexual era necessário para a reprodução.
Ivanov desenvolveu instrumentos que permitiam uma operação simples e rápida no campo, conseguindo colocar a Rússia em posição de destaque na pecuária.
Logo, sua tecnologia estava sendo aplicada em cavalos e outros animais de interesse. Esse sucesso foi conseguido por causa do constante apoio financeiro que recebia dos ministérios russos e da aristocracia da época.
Mais tarde, Ivanov ganharia seu próprio laboratório, recebendo cartas de recomendação de Pavlov, o primeiro prêmio Nobel da Rússia.
O trabalho experimental de Ivanov sofreu influências da genética, ciência que começava a surgir em solo russo, fazendo com que se interessasse por questões fundamentais sobre a fertilização de diferentes espécies animais.
A fertilização artificial permitia o cruzamento de animais diferentes, construindo novas formas de vida que não existiam na natureza.
Diversos experimentos foram feitos, resultando em híbridos exóticos. Em 1910, Ivanov comenta publicamente que o uso da inseminação artificial poderia gerar um híbrido entre humano e outros primatas.
No entanto, não existem evidências de que estaria planejando algo assim, talvez pela falta de acesso direto às espécies para experimentos. A situação mudaria drasticamente após a Revolução Russa de 1917.
O radicalismo do comunismo bolchevique chegou destruindo o sistema de terras privadas e toda a hierarquia da sociedade russa.
No entanto, a revolução respeitava o significado da ciência e seus especialistas. A revolução eliminou a rede de apoio financeiro que Ivanov tinha, principalmente da aristocracia e realeza.
Para seguir seus estudos, Ivanov acabou indo para a Alemanha e depois para a França, onde lançou a ideia dos experimentos de hibridização de humanos e chimpanzés aos diretores do Instituto Pasteur.
Curiosamente, os diretores permitiram que Ivanov utilizasse as instalações da estação de primatas em Kindia, na Guiana Francesa.
Com o apoio francês, Ivanov pediu permissão para sua missão aos bolcheviques. A aceitação dos experimentos e da proposta foi feita com base no fato de que, caso ele gerasse um híbrido, esse seria usado como propagando do partido contra os ensinamentos religiosos e para a libertação dos trabalhadores do poder da Igreja Ortodoxa.
Literalmente, o que o partido queria era esfregar na cara dos religiosos um híbrido primata, meio humano, meio chimpanzé, como evidência crucial da teoria evolutiva de Darwin.
A definição de humanos como superiores aos outros animais influenciou diversos pensamentos racistas, classistas e machistas.
O estado “degenerado”, também considerado como primitivo ou animal, era visto como um ataque moral à espécie humana.
O programa revolucionário socialista tentava aniquilar esses conceitos, destruindo tabus sociais e culturais. Era mais fácil falar em experimentos cruzando espécies dentro desse contexto bolchevique.
O medo de que a Rússia não se industrializasse tão rapidamente quanto o Ocidente tinha como principal razão a falta de cultura e analfabetismo da população, parcialmente causada pelo forte contexto religioso.
Assim, a elitização da ciência e principalmente o experimento de hibridização proposto por Ivanov seriam fortes aliados para “iluminar” a população.
A ressonância pública de tal híbrido seria uma forma de o comunismo derrotar visões religiosas. Darwin, em particular, tinha um valor político direto como ferramenta de propaganda antirreligiosa.
Curiosamente, não existem evidências sobre qualquer discussão a respeito do aspecto ético de tal experimento.
Aparentemente, o fato de que os experimentos seriam executados longe da “sociedade civilizada” era suficiente para que as questões éticas e morais fossem deixadas de lado.
No primeiro semestre de 1927, Ivanov, auxiliado por seu filho, já havia inseminado três chimpanzés fêmeas, mas nunca obteve um híbrido.
As descrições das inseminações nos animais extraídas do diário de Ivanov mostram claramente o trato brutal com os animais, muitas vezes causado pela pressa em realizar os experimentos, longe do olhar crítico do pessoal que trabalhava na estação e que não tinha a capacidade mental para entender tais experimentos.
A natureza do esperma também não é clara. Se por um lado Ivanov havia escrito que esperma de um “negro” poderia funcionar melhor, é possível que tenha usado esperma do próprio filho.
A falta de sensibilidade de Ivanov durante os experimentos talvez reflita a necessidade de se distanciar psicologicamente de um bebê híbrido em potencial.
Aparentemente, a razão do fracasso em Kindia foi atribuída ao fato de que os animais usados eram pré-adolescentes, fato desconhecido na época.
O financiamento inicial de Ivanov estava chegando ao final, mas ele esperava que, se conseguisse obter ao menos um híbrido, garantiria fundos futuros.
Quando seu período terminou, Ivanov levou alguns primatas para Sukhum, uma estação de primatas com clima subtropical no território soviético.
Nessa etapa, Ivanov tentou continuar seus experimentos, mas desta vez usando mulheres voluntárias que seriam inseminadas com o esperma de um orangotango macho, conhecido como Tarzan.
Num primeiro momento, Ivanov estaria disposto a fazer os experimentos sem o consentimento das mulheres, mas foi vetado pela Academia de Ciências Russa. A única opção viável seria executar os experimentos com voluntárias.
Interessante notar que, ao mesmo tempo em que a Revolução Russa buscava uma sociedade sem classes, também buscava a igualdade entre os sexos.
Mulheres deveriam ter participação política e liberdade para divórcio ou aborto. Milhares de jovens mulheres participavam das campanhas de emancipação promovidas pelo Partido Comunista.
E foi nesse contexto que foi anunciada a necessidade de voluntárias para o experimento de Ivanov, o qual buscava mulheres “iluminadas pelo comunismo e livres de tabus supersticiosos”.
Ivanov e os cientistas da época ignoravam completamente que uma voluntária poderia se afeiçoar sentimentalmente ao bebê. Por incrível que pareça, Ivanov conseguiu uma voluntária.
Em carta destinada a Ivanov, a voluntária se mostrava desesperada com problemas particulares e só via razão em existir ao servir a ciência.
A análise microscópica do esperma de Tarzan mostrou espermatozoides ativos. Infelizmente, Tarzan morreu de forma inesperada de uma hemorragia cerebral. O experimento teve de ser adiado e novos animais foram requisitados.
Ivanov estava numa posição delicada. Se por um lado a revolução cultural russa tornou seus experimentos ideologicamente aceitáveis, por outro o colocava em risco pessoal.
Ivanov era considerado um dos “tradicionais especialistas” e corria o risco de sofrer críticas políticas e repressão.
De fato, Ivanov acabou sendo acusado e exposto por seus antigos assistentes, um padrão comum usado pelo partido para afastar antigos cientistas que haviam servido à aristocracia.
Os experimentos de Ivanov terminaram quando foi aprisionado pelo serviço secreto russo em 1930, acusado de atividades antirrevolucionárias.
Foi liberado no ano seguinte, mas morreu com 61 anos sem ter publicado nada sobre suas tentativas de gerar um híbrido.
Documentos referentes a isso ficaram esquecidos em antigos arquivos durante anos. Até que algum roteirista de Hollywood se interesse pela história, a grande maioria das pessoas não saberá nada sobre os experimentos de Ivanov.
Nas décadas seguintes, diversos pesquisadores propuseram que esses experimentos fossem realizados, mas eles estavam cada vez mais impossíveis do ponto de vista ético: o que aconteceria se o experimento fosse um sucesso? O híbrido seria considerado humano ou animal? Poderíamos usar a definição de “humano” para os híbridos?
Uma vez que os humanos diferem de outros primatas no número de cromossomos, é possível que eventuais híbridos sejam estéreis.
Hoje se sabe que, muito provavelmente, a inseminação de esperma humano em outros primatas não resulta em fecundação, pois o esperma humano é imunogênico, sendo atacado prontamente pelo sistema imune de primatas não-humanos.
No entanto, o inverso pode não ser verdade. Aliás, hoje em dia a fertilização in vitro poderia, em tese, gerar embriões híbridos em laboratório e implantados diretamente no útero.
Acredita-se que o embrião não conseguiria se desenvolver por muito tempo por causa da incompatibilidade genética.
Apesar de termos cerca de 99% de nosso DNA semelhante ao dos chimpanzés, as duas espécies seguiram caminhos evolutivos muito distintos.
Muito provavelmente esses experimentos nunca foram realizados. O sentimento de aversão que surge na maioria das pessoas quando expostas a essa idéia não tem uma explicação clara.
Parte disso parece estar ligada a um resíduo na crença de que o material humano é sagrado. Mesmo um dos maiores racistas de todos os tempos, Adolph Hitler, expressou indignação sobre possíveis experimentos de hibridização humana, acreditando que qualquer mistura levaria à degeneração da espécie.
Do ponto de vista cientifico, vejo pouco fundamento em tais experimentos. Mas o fato de que eles foram plenamente justificados por uma sociedade humana é um alerta que faz pensar. Valores morais não são estáticos.
Fonte: G1
Um comentário:
Impressionante a matéria! Nunca tinha ouvido falar em coisa semelhante. Em que pese uma certa tendência anti-comunista no artigo, foi muito oportuno.
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