Reconstituição da paisagem de Sergipe há 40 mil anos, com
diversos representantes da megafauna que viviam na região, entre eles, a
preguiça gigante. (arte: Marcelo e Tânia Viana; concepção: Mário
Dantas)
Fóssil encontrado em
Sergipe traz evidência direta da interação entre a nossa espécie e esses
animais. A descoberta, tema da coluna deste mês de Alexander Kellner,
suscita questões sobre como se comprova a alteração de um material pela
ação humana e quando essa megafauna se extinguiu.
Por: Alexander Kellner
Quando recebi de Mário Dantas (Universidade Federal de Minas Gerais) o
trabalho que ele publicou com outros colegas no periódico Quaternary International sobre
um dente de uma preguiça gigante extinta modificado pela ação humana,
logo imaginei que esse assunto seria bem interessante para a coluna Caçadores de fósseis.
Quantas vezes se tem a chance de discutir a interação entre animais
extintos há milhares de anos e as primeiras levas da nossa espécie que
chegaram à América do Sul?
No entanto, logo percebi que a problemática é bem maior do que eu
supunha. Não apenas por suscitar a questão de como se comprova que um
dente ou algum fóssil foi realmente manuseado pelo homem há milênios,
mas também por envolver temas complexos, como até quando viveram os
integrantes de algumas espécies extintas.
Poço redondo
O exemplar pesquisado por Mário Dantas e colegas foi coletado em 2010
na fazenda São José, situada no município de Poço Redondo, em Sergipe.
O
depósito é do tipo tanque, uma depressão natural formada por processos
físicos e erosão química a partir de fraturas preexistentes na região.
Os sedimentos que preenchem esse tipo de depressão foram carreados
devido a chuvas que, quando bem intensas, geravam um fluxo de água que
também podia transportar restos de animais mortos presentes nos
arredores da depressão.
Aliás, justamente nesse tipo de depósito
encontra-se grande parte dos fósseis atribuídos à chamada megafauna, que
vivia em diferentes regiões do nosso planeta, particularmente durante o
Pleistoceno (entre 1,8 milhão e 11,5 mil anos atrás).
O dente da preguiça gigante foi encontrado em um depósito em Poço Redondo (Sergipe) formado por uma depressão natural que abriga sedimentos carregados pela água da chuva. (foto: Mário Dantas)
Apenas para relembrar, a megafauna é composta por animais geralmente
de grande proporção que conviveram com a espécie humana e se extinguiram
ao final da última era do gelo, entre 12 mil e 10 mil anos atrás. Entre
os grupos mais famosos se destacam os mamutes, as preguiças gigantes e
os tatus de grandes dimensões.
Processos naturais ou ação humana?
Entre os diversos fósseis coletados em Poço Redondo, um chamou
bastante a atenção dos pesquisadores: um dente.
Ao se depararem com esse
exemplar, Mário e colegas notaram que ele estava incompleto, sem, no
entanto, apresentar uma quebra natural, que poderia ter resultado de
diversos processos físicos antes mesmo da preservação do material.
Quebras poderiam ter ocorrido, por exemplo, durante o transporte do
dente para dentro do tanque. Porém, quando isso acontece, as partes
quebradas exibem uma superfície bem característica, bastante irregular,
sem apresentar qualquer ranhura ou estrutura orientada.
Ou então o dente poderia ter sofrido a ação de pisoteamento, devido
ao confinamento de animais em uma pequena área.
Sem espaço e com mortes
ocorrendo, eles acabam pisando nas carcaças. Tal situação pode ser
observada hoje em dia nas savanas africanas em períodos de seca, quando a
fauna local acaba se concentrando perto de corpos d’água, com muitos
indivíduos e pouco espaço. Esse tipo de quebra também exibe marcas
características: ranhuras sem qualquer direção preferencial.
O dente de Poço Redondo, ao contrário, é marcado por sulcos paralelos
situados na sua ponta e nas suas laterais. Além disso, todo o dente é
bastante liso, o que sugere que foi aplainado, algo incompatível com um
processo natural. Por último, foram encontrados junto com esse exemplar
artefatos líticos, o que é evidência direta da ação humana.
Além de ser bastante liso, o que sugere que foi aplainado, o dente estudado é marcado por sulcos paralelos situados na sua ponta e nas suas laterais, como mostram os detalhes da figura. (foto: Mário Dantas)
Uma das questões intrigantes que Mario e seus colegas tiveram que
desvendar é a qual espécie o dente pertencia. Apesar de o fóssil estar
incompleto, os pesquisadores puderam identificar camadas com cimento,
ortodentina e ortodentina modificada.
A análise dessas camadas mostrou
que o dente pertence ao grupo Megatheriidae, formado pelas preguiças
gigantes.
Das duas espécies de preguiça gigante existentes em solo brasileiro, Megatherium americanum foi registrada apenas na região Sul do país, enquanto Eremotherium laurillardi
tem distribuição em todo o território nacional, incluindo o Nordeste.
Logo, não é preciso pensar muito nos motivos que levaram aos autores a
atribuir o material encontrado a Eremotherium laurillardi... Mas a descoberta ainda tem outras implicações...
Idade do fóssil
Ao pesquisar sobre artefatos líticos encontrados no estado de
Sergipe, os registros mais antigos são atribuídos à cultura Canindé.
Com
base em datações realizadas por meio do método do Carbono 14, foi
estabelecido que essa cultura estava desenvolvida entre 8.950 e 5.570
anos atrás – idade estimada também para o dente.
Diante desses dados, Mário e colegas chegaram a duas alternativas. Ou
a espécie de preguiça gigante viveu até o Holoceno (que se estende de
11,5 mil anos atrás aos dias atuais) e interagia com a população humana
existente naquele tempo, ou então a chegada da espécie humana à América
do Sul é mais antiga do que se supõe, devendo ter ocorrido há cerca de
15 mil anos – idade já proposta por alguns autores, mas não aceita pela
maioria dos pesquisadores.
Sem querer me aprofundar nessa questão (que poderia ser o tema de
outra coluna), o período exato da chegada da espécie humana à América do
Sul tem sido foco de uma discussão intensa.
As evidências físicas
diretas são representadas por um crânio encontrado em Lagoa Santa (Minas
Gerais). Esse exemplar, ao qual se deu o nome informal de Luzia e que
se encontra exposto no Museu Nacional/UFRJ, teve sua idade determinada
entre 11 mil e 11,5 mil anos.
Resta, agora, que os pesquisadores deem prosseguimento a essa
escavação na região de Poço Redondo, em Sergipe. Se a burocracia deixar,
eles certamente farão diversas novas descobertas, que podem elucidar
essa interessante questão que é a interação entre a nossa espécie e a
megafauna.
Obrigado ao Mário pelo envio do trabalho.
Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
Fonte: Ciência Hoje
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