Em uma voz firme e profunda, Bose Yacu entoa os
cânticos que ela aprendeu com seu pai na região boliviana da floresta
Amazônica, há 50 anos.
"Meu pai, Papa Yacu, cantava esse quando ele via
trilhas de porco e saía para caçar... já esse outro, quando colhia
amêndoas... e esse outro era para mostrar que vínhamos em paz, quando
visitávamos alguém", explica Bose, ao fim de cada canção.
Sentada do lado de fora de sua casa feita de madeira, Bose – uma
mulher magra com longos cabelos negros presos em um rabo de cavalo – era
a mais velha dos pacahuaras e a única que ainda mantinha algumas das
tradições da sua tribo, como usar uma franja e um pequeno pedaço de pau
em seu nariz, com uma pena vermelha de cada lado.
Quando eu a visitei em seu vilarejo, em
setembro, senti que suas histórias e cânticos escreveriam o último
capítulo da história de sua tribo.
Bose morreu recentemente, deixando cinco irmãs: as últimas pacahuaras do mundo.
A notícia de sua morte não foi manchete em nenhum jornal, mas foi uma
imensa perda, já que as pacahuaras não têm para quem transmitir seus
conhecimentos.
'Poucos sobreviventes'
Dois séculos atrás, os pacahuaras eram um dos principais grupos indígenas na Amazônia peruana. No final do século 18, eles "ocupavam um vasto
território", mas "dois séculos depois, dá para contar na mão o número de
pacahuaras que restaram", de acordo com o antropólogo francês Philippe
Erikson, no prefácio de seu livro The Pacahuaras: The Impossible Reduction (em tradução livre – Os Pacahuaras: a redução impossível).
Os cinco sobreviventes dos pacahuaras vivem nas
cercanias de Alto Ivon, um remoto vilarejo no nordeste da Bolívia, para
onde eles foram relocados em 1969.
Missionários americanos ajudaram a transferi-los, para escapar de problemas que atingiam a tribo. Era um período em que havia uma febre de
produção de borracha em todo o mundo – e isso estava causando graves
problemas para as tribos indígenas na Amazônia, alvo da exploração do
produto.
Os pacahuaras dizem ter sofrido terrivelmente
nas mãos de seringueiros brasileiros. De toda a comunidade, acredita-se
que apenas a família de Bose sobreviveu:
"Lutamos muito. Meu pai foi atingido na cabeça e jogado no rio, mas ele conseguiu sobreviver e voltou para casa", conta ela.
Como restante da tribo, Bose não sabe sua idade exata, mas lembra que chegou quando era adolescente em Alto Ivon.
Era a terra dos chacobos, uma tribo com raízes e
língua similares. Hoje, cerca de 500 pessoas falam chacobo, que está na
categoria "definitivamente em perigo", segundo a Unesco.
Já a língua pacahuara foi classificada como "em perigo crítico", apenas um estágio antes de "extinto".
Trilha com machetes
Ambas as tribos falam línguas da família
linguística Panoan. Os missionários do Instituto Summer de Linguística
ajudaram os pacahuaras a se mudarem para uma região 200 quilômetros ao
sul da Amazônia, para que eles pudessem ser assimilados pelos chacobos.
De acordo com o antropólogo boliviano Wigberto Rivero, "era a única
opção para salvá-los, já que, por causa do número reduzido de membros, o
crescimento biológico da tribo era impossível". Os chacobos aceitaram a proposta dos missionários e alguns inclusive ajudaram na transição.
"Nós sabíamos que eles estavam enfrentando
muitos problemas. Fizemos trilhas na floresta e espalhamos machetes e
machados", conta Alberto Ortiz Alvarez, líder chacobo, que é o
presidente o Conselho Indígena da Amazônia boliviana.
Ortiz lembra que quando viram que os objetos haviam sumido, sabia que a tribo estava perto e que em pouco tempo os encontraria.
Uma vez que os pacahuaras chegaram, foram
recebidos com uma festa, em que receberam bananas e mandioca. O grupo
era liderado pelo pai de Bose, que tinha duas esposas e seis filhos.
'Nossa cultura ainda está viva'
Mais de 40 anos após a migração, com o patriarca
e suas esposas mortos, restaram seus seis filhos – sendo que quatro
deles se casaram com membros da tribo vizinha e adotaram sua língua e
seus costumes.
Maro é o mais novo dos pacahuaras. Ele chegou em Alto Ivon quando ainda era um bebê. Ele já não fala mais sua língua nativa e diz que seus filhos não vão aprendê-la.
"Falar chacobo é mais direto. Eles não conseguem falar como Bose falava", diz Maro, que é casado com uma mulher chacobo.
De acordo com Rivero, "é um processo de
assimilação irreversível" que começou com a língua e, em muitos casos,
como o de Maro, se tornou uma assimilação social e cultural.
Cachorro de rua
Bose era a mais velha e a única que se casou com um membro da tribo: Buca, que era cerca de 10 anos mais novo que ela.
"Quando eu era nova, não tinha um marido. Nessa
época, meu pai se casou também com a irmã da minha mãe. E meu marido era
filho da sua segunda mulher. Então, na verdade, meu marido e eu éramos
meio-irmãos", disse Bose.
O casal não quis falar sobre o porquê de não
terem filhos. E mesmo sabendo que isso significaria o fim da sua língua,
não era algo que parecia preocupá-los.
"Não estou triste. Nossa cultura ainda está
viva. Quando a gente morrer, ela vai morrer também", disse Buca, quando o
visitei em setembro.
Mas após a morte de sua esposa, ele está vagando
na floresta, "sozinho, como um cachorro de rua", contou Pae Dávalos, um
chacobo.
A morte de Bose deixou Buca transtornado. E deve
também deve ter entristecido o professor de chacobo Here Ortiz Soria,
que estava tentando arrecadar fundos para registrar a história e a
língua dos pacahuaras.
Soria, cuja filha é casada com a segunda geração
pacahuara, queria entrevistar Bose e reunir palavras na língua da tribo
para ensinar as gerações mais novas.
Mas a anciã pacahuara morreu antes disso, levando consigo os últimos capítulos da língua e da história da tribo.
Fonte: BBC

Um comentário:
Amigos do "Arquivo Insólito":Deixo-lhes um poema brotado quando soube da passagem de Bose yacu.saudaç~eos cordiais.
clevaneplopees@gmail.com.
Poema para a Pacahuara Bose Yacu (***)
Última flor de árvore quase morta,
dos pacahuaras,
atraia a vida de uma natureza
quase esquecida, pelos demais,
as tradições de sua etnia.
as crenças, as lendas,
a medicina codificada e decodificada...
Mas ela está mesclada aos ares,
pode soprar nos sonhos e nos ouvidos
num idioma reinventado, quem sabe,
pelas novas gerações?
Sabemos não, se chamarmos baixinho
Bose Yacu, Bose Yacu,
o sol e a lua mandarão
mensagens de alento
ao rio que se esvai,
à terra sem raízes comestíveis
à mata devastada?
Podes responder agora?
Os peixes multliplicar-se-ão?
O efeito estufa abrandará o clima?
A chuva cairá abençoando as tribos?
Sei que teu espírito despedaçado embora,
leva urupema de receitas
preces e segredos.
Sei que voas e não irás embora.
Mas teu coração de penas suportará
a dor desse final?
Qualquer dia, quando cantares,
faz tua voz chegar e apaziguar
todos que se agiram sem ti
e os responsáveis
pelo extermínio do verbo sagrado de tua Língua.
Se possível, deixa-me dormindo que seja,
escutar-te e ver-te dançar...
Clevane Pessoa
janeiro-2013
Fonte:http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/poeregistra/2013/pr130123.php
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