Novos ossos de escravos foram encontrados nas escavações feitas em
frente ao Cemitério dos Pretos Novos na rua Pedro Ernesto, no Rio de
Janeiro. O achado arqueológico aconteceu no meio do esforço de
revitalização do centro do Rio e dá mais elementos para as pesquisas em
torno do tema.
Aproveitando-se as obras que já estão paralisando vários pontos do
Centro do Rio, os arqueólogos isolaram a parte da rua na Gamboa (foto
abaixo), onde, no final dos anos 1990, foram encontrados restos mortais
de escravos que morreram logo que chegaram da longa viagem nos navios
negreiros.
O nome “pretos novos” definia os escravos recém chegados da África,
que não sobreviviam ao suplício da viagem e morriam antes de serem
comercializados, explica o historiador Julio Cesar de Medeiros. Ele
estudou o local em uma premiada tese de mestrado.
A importância desse sítio arqueológico no Rio cresce a cada dia com o
aumento dos estudos sobre a origem das pessoas escravizadas trazidas
para o Brasil. Mas o local é desconhecido pela maioria da população
brasileira. Ele nos revela sinais do estarrecedor passado em que a
escravidão foi a base do trabalho e da economia por mais de 300 anos.
O historiador encontrou registros de que, no curto período de 1824 a
1830, 6.119 corpos foram jogados no local. E digo “jogados” porque eles
não eram enterrados propriamente, eram descartados lá, e deixados
insepultos ou apenas com um pouco de terra por cima. Até agora não foram
encontrado corpos inteiros nas escavações feitas em outras partes do
entorno. Uma das razões é que os ossos eram quebrados, às vezes
queimados, para caber mais corpos no mesmo local.
Esta é a primeira vez que a própria rua Pedro Ernesto, na Gamboa, é
escavada. Como se pode ver nas imagens, a história do Rio, está em toda a
parte, inclusive a alguns palmos abaixo do chão. A tese do professor
Medeiros, que virou o belo livro “À flor da terra”, é um trabalho
exemplar de investigação. O historiador encontrou os registros dos
sepultamentos — ou “insepultamentos” — em antigo catálogos da Cúria
Metropolitana do Estado.
Os negros recém chegados, em sua maioria, não tinham ainda nomes na
nova terra. Por isso o registro informa o porto onde a pessoa havia sido
embarcada, a idade presumida, o navio que o trouxe e o nome do
traficante. Dá para saber que havia muitas crianças. O catálogo
analisado ponto a ponto pelo historiador trata apenas de 1824 a 1830. Em
entrevista ao blog, Medeiros contou que existe outro livro de um
período anterior, de 1816 a 1824, mas está praticamente ilegível. O
cemitério funcionou ali desde o fim do século XVIII.
HISTÓRICO
O Cemitério dos Pretos Novos foi primeiramente encontrado pela descendente de espanhóis, Ana Maria de la Merced Guimarães dos Anjos, conhecida como Merced, e o marido Petrucio Guimarães durante uma obra na casa que haviam comprado ao lado da sua. Eles queriam fazer um estacionamento no local, para uma renda extra, mas se depararam, quando começaram a escavar, com uma grande quantidade de ossos. Pararam a obra e chamaram os peritos da prefeitura.
Os estudos arqueológicos revelaram que aquele local vinha sendo
procurado há muito tempo por pesquisadores porque fora descrito pelos
visitantes estrangeiros que vieram para o Brasil no início do século
XIX. Chocados, eles descreveram o cemitério com palavras fortes.
Em 1814, o alemão G. W. Freireyss escreveu: “No meio deste espaço [de
50 braças] havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, saíam restos
de cadáveres descobertos pela chuva que tinha carregado a terra e ainda
havia muitos cadáveres no chão que não tinham sido ainda enterrados”.
Outro, um inglês, relatou: “Quase não é preciso acrescentar-se que
nesses cemitérios assistiam às mais repugnantes cenas aqueles que
entendiam de escolhê-los para campos de suas observações, sendo o mau
cheiro intolerável, e pondo eles em sério perigo a saúde da cidade,
enquanto não houver uma reforma”.
Pesquisadores e os donos da casa se uniram para transformar o local
no que hoje é o Instituto dos Pretos Novos, um centro cultural e de
preservação da história da escravidão e dos negros.
O blogueiro esteve recentemente em visita à casa. É impressionante,
triste, ver as marcas desse passado, mas ao mesmo tempo, é importante
constatar que se começa o trabalho de preservação e de respeito à
memória dos que viveram e morreram de forma tão trágica, e que foram
desrespeitados até depois da morte.
O que a gente vê são alguns ossos juntos, arcadas dentárias, um
pedaço de fêmur, e outros fragmentos no chão, à flor da terra. Numa
terra que nasceu supostamente cristã, religião que tem por lema, no Novo
Testamento, o “amai o teu próximo como a ti mesmo” é difícil entender
esse passado. Não era o caso ali, um pequeno território com sinais de um
tempo extremo. Nas primeiras escavações do sítio arqueológico, foram
encontrados 5.563 fragmentos de ossos permitindo identificar 28 corpos —
jovens do sexo masculino, com idades entre 18 e 25 anos, um em cima do
outro.
Agora as novas fotos obtidas pelo blog, e que foram feitas durante os
trabalhos da nova escavação na rua em frente à casa, mostram um crânio
(imagem principal, acima), uma arcada e um bloco que eles acreditam ser
de ossos compactados (foto abaixo), porque assim eram tratados os restos
mortais dos escravos para caberem em espaço tão pequeno que a cidade
destinou para este cemitério. O resultado das análises do material nos
trará mais informações que irão se somar ao que já sabemos: o Cemitério
dos Pretos Novos é um patrimônio histórico da humanidade.
O professor Medeiros conta que o cemitério era administrado pela
paróquia de Santa Rita, uma entidade católica que cobrava do Estado pelo
serviço. O respeitado professor José Murilo de Carvalho, orientador da
tese de Medeiros, descreveu o estudo com um relato de um outro mundo,
“marcado pelo sofrimento de uns e pelo desrespeito de outros, um mundo
de práticas desumanas. […] Ao horror dos navios negreiros e das
senzalas, será preciso acrescentar agora o do Cemitério dos Pretos
Novos”. Esse era o tratamento que dávamos a seres humanos: enterros a um
palmo de profundidade, ou nem isso, sem direito a qualquer ritual
religioso.
Após 1830, espaço temporal na qual termina a pesquisa da tese de
mestrado, a Inglaterra exigiu que o Brasil aprovasse leis que impedissem
o tráfico de escravos. No entanto, todos sabiam que essas leis não
seriam cumpridas. Assim, eram criadas apenas “pra inglês ver”.
É esta a origem do hábito conhecido de mentir, dissimular, e
disfarçar o não respeito às leis. Depois de 1830 o tráfico negreiro
continuou, mas como estava oficialmente proibido, os mortos na chegada
foram jogados em outros lugares, que permanecem desconhecidos. Em 1850, a
lei Eusébio de Queiroz veio para confirmar que as antigas proibições
deveriam ser respeitadas. Foi só a partir daí que o tráfico começou a
declinar.
O Cemitério dos Pretos Novos tem enorme importância por ser apenas de
africanos recém chegados, o que nos ajuda a saber exatamente as etnias
que formam parte da gente brasileira. Sua importância histórica também
começa a ser entendida. O Instituto está reivindicando que fiquem lá os
ossos encontrados na rua, da mesma forma que foi doado ao Instituto, um
ferro de marcar escravos encontrado em outra escavação nas proximidades.
Fonte: Matheus Leitão
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