sábado, 16 de agosto de 2008

Parentes dançam com familiares mortos em Madagascar


Para os estrangeiros, a tradição malgaxe da famadihana, ou “virada dos ossos” – em que parentes de um defunto exumam o corpo anos após a morte e dançam com o cadáver – pode parecer assustadora.

Mas, para a população da ilha africana, trata-se um ritual que mostra respeito pelos antepassados e transforma a dor da perda em alegria.

Não longe do vilarejo de Vatolaivy, uma multidão se reúne no alto de um colina para participar do ritual. Eles estão acompanhados por uma banda com clarinetes e trompetes, que está tocando há horas.

As pessoas conversam e sorriem, muitas estão bêbadas, a maioria está dançando e por perto há camelôs vendendo cigarros e iogurte.

Mas é a sepultura na colina que concentra as atenções. Ou melhor, os seus ocupantes.

Pedreiros chegam e retiram a porta de pedra da baixa estrutura de tijolos ao redor da qual a festa está ocorrendo. E Roger, cujos familiares estão enterrados no jazigo, me convida para entrar.

Dentro do jazigo, há várias camas de pedra, sobre as quais repousam os pais e avós de Roger, enrolados em um tecido amarelado.

Dança

Roger me apresenta para os seus parentes formalmente, tocando levemente cada corpo para identificá-los para mim.

Eu novamente encaro o sol do lado de fora. Atrás de mim, cada corpo é carregado com cuidado para fora do jazigo e colocados no chão pelos seus parentes.

As demais pessoas ficam em volta, assumindo o papel de expectadores deste teatro familiar.

Finalmente, a banda para de tocar e um silêncio relativo paira no ar. Vejo uma menina abraçando o corpo da mãe – ela não emite nenhum som, mas as lágrimas atravessam seu rosto.

Em seguida, os parentes retiram o tecido que envolve os corpos e o substitui por outro, novo, chamado lambas, bem caro por aqui.

É então que o clima volta a ficar mais festivo.

Os cadáveres são levantados na altura dos ombros e, em meio a risadas, os parentes os carregam e dançam com eles ao redor das tumbas.

Depois de alguns passos, com um grito de alegria, os carregadores levantam o morto ainda mais alto.

Eu percebo que a menina que estava chorando mais cedo agora está sorrindo e fazendo piadas, como as demais pessoas. Como se, quase na marra por causa das exigências do ritual, o luto tivesse se convertido em alegria.

“É importante porque é nossa forma de respeitar os mortos”, diz Jean Pierre, um membro da família, sobre o ritual. “É também uma chance de toda a família, de todo o país, se juntar.”

Origens


A famadihana é uma tradição exclusiva de Madagascar e existe há séculos. Antropólogos acreditam que ela mostra uma identidade da ilha com tradições do sudeste da Ásia, de onde vieram os seus primeiros colonizadores.

Para o antropólogo Maurice Bloch, que estudou o ritual, a idéia da reunião entre mortos e vivos e a terra da família é a chave para compreendê-lo.

Segundo ele, o ritual é uma evocação do “estar junto novamente”, uma forma de permitir que os mortos possam novamente experimentar as alegrias da vida. Mas, mais importante que isso, a famadihana é um ato de amor.

Mas alguns se opõem à prática. Nas cidades malgaxes, certas pessoas consideram o ritual ultrapassado e fora de compasso com o século 21.

Também houve problemas com missionários cristãos, que tentaram acabar com o ritual – e hoje um número crescente de evangélicos está abandonando a famadihana.

Mas, talvez surpreendentemente, a igreja católica, a maior do país, não mais se opõe ao ritual.

Jean Pierre deixou claro qual pode ser o motivo disso. Em Madagascar, essa “exumação alegre” não é uma cerimônia religiosa. É uma tradição.

Fonte: BBC

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