segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Estranha transformação



Durante um ataque epiléptico, ondas de atividade elétrica anormais se propagam pelo cérebro. O fenômeno pode gerar experiências estranhas, incluindo diversos tipos de alucinações e sensações diversas.

Mais estranho ainda foi o caso recente de uma mulher com epilepsia que se sentia transformada em homem durante alguns ataques epiléticos.

A epilepsia é uma condição neurológica cujas causas ainda permanecem desconhecidas. Em alguns casos, o início dos ataques epiléticos está relacionado com traumatismos cranianos, tumores cerebrais, alguns tipos de infecção, envenenamento ou alterações durante o desenvolvimento embrionário.

Não existe idade para que os sintomas aconteçam, apesar de serem mais prevalentes em crianças e adolescentes.

Cerca de 1 em cada 10 pessoas sofre com epilepsia em algum momento da vida. Não existe cura. O portador não controla os ataques ou crises epilépticas, o que contribui para o estigma da doença.

Um trabalho recentemente publicado, liderado por Burkard S. Kasper e colaboradores (“Ictal delusion of sexual transformation”, Epilepsy & Behavior 2009) da universidade de Erlangen-Nurnberg, na Alemanha, descreve que as sensações de transformação sexual experimentadas por uma mulher de 37 anos incluem a impressão de que a voz ficou mais grossa e os braços mais peludos.

Numa ocasião específica, a mulher relata que sentiu que uma amiga, que estava no mesmo ambiente quando ela teve o ataque, também se transformava em homem.

Dados de ressonância magnética revelaram que a mulher tinha uma lesão na amígdala cerebral direta, provavelmente causada por um pequeno tumor.

Também foram descritas atividades neuronais anormais perto do lobo temporal direito, sugerindo que aí estaria a fonte dos ataques.

Fora alguns sintomas de depressão e ansiedade, que são controlados com medicamentos, a paciente não apresenta nenhum histórico de doença psiquiátrica e nunca teve a sensação de transformação sexual na ausência dos ataques.

Sentimentos ilusórios de transformação sexual já foram descritos em pessoas com esquizofrenia e outras doenças psiquiátricas, mas nunca em pacientes com epilepsia.

Os autores deixam claro no trabalho que não acreditam que haja um centro de identidade sexual na amígdala direta.

Se esse fosse o caso, seria de se esperar alucinações parecidas em pacientes que passaram pela remoção de amígdala (um procedimento comum em pacientes cujos ataques são muito frequentes). Mas isso nunca foi descrito antes.

Muito mais provavelmente, a amígdala estaria funcionando como um nó numa rede neuronal do cérebro, essencial para o reconhecimento da própria identidade. Eventuais falhas na sincronização dessa rede causariam essas bizarras experiências sensoriais.

O grande escritor russo Fiódor Dostoiévski costumava descrever que sentia a presença de “Deus” em momentos imediatamente anteriores aos seus ataques epilépticos.

Sensações mais comuns são sentimentos de déjà vu, ou o oposto, jamais vu (a sensação de um ambiente familiar tornando-se estranho de repente).

No estado epiléptico você pode viver momentos de emoções intensas e extremas, levando-o para estados de perda de identidade do “eu” ou mesmo do seu lugar em relação ao mundo.

Essa perda da capacidade de posicionar espacialmente pode ser correlacionada com o aumento da neurogenesis no hipocampo.

O hipocampo é uma das áreas do cérebro onde se observa o constante nascimento de novos neurônios, a chamada neurogenesis.

A neurogenesis continua na fase adulta e está relacionada com memória e aprendizado. Sabe-se que o hipocampo contribui para a memória espacial do indivíduo e talvez até pelo posicionamento do “eu” ou representação corporal no espaço.

Curiosamente, ataques epilépticos ativam a neurogenesis de forma descontrolada. Os novos neurônios são produzidos em maior velocidade.

Porém, nem sempre as conexões neuronais são estabelecidas de forma correta (Overstreet-Wadiche e colegas, “Seizures accelerate functional integration of adult-generate granule cells”. “The Journal of Neuroscience”, 2006).

Essa neurogenesis desregulada poderia ser uma das causas da perda da memória espacial e reconhecimento ambiental.

A epilepsia é uma condição neurológica extremamente misteriosa, e a investigação dos mecanismos envolvidos está sempre revelando dados fundamentais para o entendimento do cérebro humano.

Epilepsia é a terceira condição neurológica mais prevalente na humanidade, abaixo somente do mal de Alzheimer e derrames cerebrais. Mesmo assim, ainda existe muito preconceito e discriminação.

A falta de conhecimento contribui para uma série de mitos sobre epilepsia, tais como classificar os pacientes como doentes psiquiátricos, retardados ou mesmo incapazes.

Neste mês ocorre a 5ª Semana Nacional de Epilepsia no Brasil, um movimento direcionado para a luta contra o estigma e para ampliar a campanha mundial “Epilepsia fora das sombras”, da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O Brasil tem posição de destaque na pesquisa, com diversos grupos trabalhando sobre o tema, na busca de mais conhecimento, diagnóstico e tratamento.

Mesmo com toda essa mobilização, o espaço na mídia dedicado à epilepsia é pequeno. Seria interessante expor mais adultos e crianças ao assunto para que o preconceito e espanto ao presenciar uma pessoa tendo ataque epiléptico sejam coisas do passado.


Fonte: G1

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