Em uma tarde cinzenta de quarta-feira, no começo de dezembro em San Diego, um grupo de cientistas estava reunido em torno de um objeto parecido com uma embalagem industrial de iogurte congelado. O topo, exposto, deixava antever fumaça de gelo seco.
O recipiente quadrado, montado sobre uma plataforma móvel, foi avançando lentamente em direção a uma lâmina de aço montada ao nível da superfície, enquanto os cientistas observavam, atentos.
A lâmina removeu a camada superior da substância, fazendo com que se enrolasse lentamente como uma fatia pálida de presunto. "Estamos quase", disse alguém.
Depois outra camada foi removida, e mais outra, e ainda outra. E foi então que o que todos esperavam começou a surgir: primeiro um ponto rosado, em seguida uma mancha, e por fim porções cada vez maiores a cada fatia, como que manchas de vinho derramadas sobre um tapete claro: fatias de um cérebro humano.
Aliás, não um cérebro qualquer, mas o cérebro que em vida pertenceu a Henry Molaison, ou H. M., um paciente de amnésia que colaborou com centenas de estudos sobre a memória e morreu aos 82 anos, em 2008. (Molaison, depois de consultar um parente, concordou anos atrás em doar seu cérebro à ciência.)
"Pode-se perceber por que todos estão tão nervosos", disse Jacopo Annese, professor assistente de radiologia na Universidade da Califórnia em San Diego, enquanto removia delicadamente uma fatia de cérebro, usando um pincel de pintura, armazenando-a em uma bandeja rotulada repleta de solução salina. "Sinto como se todo o mundo estivesse me observando por sobre o ombro".
E ele tinha razão. Milhares de pessoas se conectaram para assistir ao procedimento ao vivo, via Webcast.
A dissecação representava, entre outras coisas, a culminação da notável vida de H. M., e de mais de um ano de preparativos para aquele momento, orquestrados por Suzanne Corkin, pesquisadora da memória no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) que trabalho com Molaison nas cinco décadas finais da vida dele.
Mas também representava o início de algo muito maior, pelo menos nas esperanças de Annese e diversos outros cientistas.
"O advento de sistemas que permitem registrar imagens do cérebro abriu inúmeras possibilidades", disse Sandra Witelson, neurocientista da Escola de Medicina Michael De Groote, parte da Universidade McMaster, no Canadá, e administradora de um banco que contém 125 cérebros, entre os quais o de Albert Einstein.
"Mas acredito que em meio a todo esse entusiasmo, as pessoas tenham esquecido da importância anatômica que têm os estudos de tecidos cerebrais, e agora temos um projeto que poderia realmente redespertar o interesse quanto a essa área".
O projeto da Universidade da Califórnia - conhecido como "Observatório do Cérebro" e criado para receber doações de cérebros para estudos - é um esforço para estabelecer uma ponte entre o passado e o futuro.
A dissecação de cérebros é uma arte que remonta a muitos séculos, e ajudou cientistas a compreender as áreas em que funções como processamento de linguagem e visão se concentram, comparar matéria cinzenta e matéria branca e as concentrações de células entre as diferentes populações, a fim de aprender sobre os danos causados por doenças como o Mal de Alzheimer e derrames.
No entanto, não existe um padrão único para a dissecação de cérebros. Alguns pesquisadores começam o corte pelo topo da cabeça e prosseguem para baixo, em paralelo ao plano que percorre nariz e orelhas; outros dividem o órgão em diversas porções, e em seguida seccionam as áreas de interesse.
Nenhum dos métodos é perfeito, e qualquer corte pode tornar difícil, ou até impossível, reconstruir os circuitos que conectam células em áreas distantes do cérebro e, de alguma forma, criam uma mente capaz de pensamento e emoção.
Para criar o mais completo quadro possível, Annese corta fatias muito finas - de cerca de 70 mícrons, finas como papel- do cérebro todo, mais ou menos em paralelo com o plano da testa, começando pela frente.
Talvez o mais conhecido pioneiro dessas técnicas de fatiamento cerebral seja o Dr. Paul Ivan Yakovlev, que construiu uma coleção contendo fatias de centenas de cérebros, hoje abrigada em uma instalação de armazenagem especializada perto de Washington.
Mas Annese dispõe de algo que Yakovlev não tinha: tecnologia avançada de computação capaz de mapear e reproduzir cada fatia digitalmente.
Um cérebro inteiro resulta em cerca de 2,5 mil fatias, e o volume de informação em cada uma delas, assim que os detalhes microscópios são adicionados, ocupa um terabyte de espaço de armazenagem.
Os computadores da Universidade da Califórnia em San Diego agora estão montando um mapa integrado com todas as fatias do cérebro de Molaison, para criar algo que Annese define como "um sistema de buscas semelhante ao Google Earth", o primeiro atlas completo do cérebro, em reconstrução integral, disponível para os interessados via internet.
"Vamos obter alta resolução até o nível de células individuais, algo que não estava amplamente disponível no passado", disse Donna Simons, professora visitante no Centro de Arquitetura Cerebral da Universidade do Sul da Califórnia.
O fatiamento do cérebro em camadas finas "abrirá muito mais oportunidades de estudar a conexão entre as células, os circuitos propriamente ditos, sobre os quais temos ainda tanto a aprender".
Os especialistas estimam que existam cerca de 50 bancos de cérebros no mundo, muitos dos quais contendo órgãos doados por pacientes portadores de problemas neurológicos ou psiquiátricos, e alguns com cérebros de pessoas que não eram portadoras de distúrbios.
"Idealmente, quem quer que disponha da tecnologia deveria fazer o mesmo com seus espécimes", disse Corkin.
Os desafios técnicos a superar nada têm de trivial, no entanto. Para preparar um cérebro para dissecação, Annese primeiro o congela em uma solução de formol e sucrose, a temperatura de menos 40 graus.
O congelamento, no caso de H. M., demorou quatro horas, e foi conduzido em etapas de alguns graus por vez.
O cérebro, como muitos outros objetos, pode se tornar quebradiço ao congelar. E existe o risco de uma rachadura.
Molaison perdeu sua capacidade de criar memórias novas depois de uma operação para remover uma pequena porção de tecido em cada um dos hemisférios de seu cérebro, o que o torna ainda mais delicado que a média. "Uma rachadura poderia ter sido desastrosa", afirma Annese. Ela não ocorreu.
Com a ajuda de David Malmberg, engenheiro mecânico da universidade que já projetou equipamento para uso na Antártida, o laboratório construir uma coleira cervical metálica para suspender o cérebro e mantê-lo na temperatura exata.
Alguns graus mais frio que o programado poderiam significar a destruição da lâmina no momento do corte; alguns graus mais quente, a lâmina começaria a danificar os tecidos.
Malmberg controlava a temperatura por meio do bombeamento de etanol pela coleira metálica em ritmo contínuo, preservando os 40 graus negativos.
As mangueiras eram manobradas por meio de cintas elásticas utilizadas para prender pranchas de surfe, que ele comprou dias antes da dissecação.
Depois do trabalho de fatiamento e armazenagem, que demorou cerca de 53 horas, o laboratório de Annese deve em breve iniciar um processo igualmente laborioso de montagem de cada fatia em uma lâmina de vidro.
O laboratório testará lâminas regularmente, para ilustrar os traços do órgão reconstruído. E planeja fornecer fatias para estudos externos.
Pesquisadores externos poderão requerer amostras e usar métodos próprios de visualização para analisar a composição específica das áreas de maior interesse.
"Para o trabalho que faço, observar os genes expressos preferencialmente por determinadas áreas do cérebro será um recurso forte", disse Simmons.
Se tudo correr como planejado, o Observatório do Cérebro catalogará uma coleção diversificada de cérebros normais e anormais - e se, o que é igualmente importante, outros laboratórios adotarem técnicas semelhantes para suas coleções-, os cientistas que estudam o cérebro disporão de dados suficientes para décadas de trabalho.
Em suas pesquisas, Witelson identificou interessantes diferenças anatômicas entre cérebros masculinos e femininos; e, no cérebro de Einstein, um lobo parietal, onde a percepção espacial fica concentrada, apresentava dimensão 15% superior à média.
"Com mais dados como esse", disse Witelson, "poderemos estudar toda espécie de comparação, por exemplo entre pessoas que são excelentes em matemática e outras menos talentosas".
"Poderíamos tomar alguém como o jogador de hóquei Wayne Gretzky, por exemplo", ela disse, "que não só sabia onde o disco estava mas para onde iria - ou seja, que aparentemente era capaz de ver em uma quarta dimensão, o tempo- para determinar se ele apresenta traços anatômicos especiais". (Por enquanto, o cérebro de Gretzky continua em uso pelo dono.)
Portanto caberá a Molaison, que deu origem aos modernos estudos de memória no século 20, que ajudará a inaugurar uma nova era no século 21.
Ou seja, tão logo Annese e sua equipe de laboratório terminarem de separar as fatias recolhidas. "É muito animador falar a respeito da ideia", disse Annese, "mas vê-la ao ser implementada é mais ou menos como esperar para ver a grama crescer".
Fonte: Terra
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