terça-feira, 20 de abril de 2010

"Cola" de animais marinhos pode acabar com ponto cirúrgico


No laboratório do doutor Russell J. Stewart, na Universidade de Utah, há um tanque de água salgada contendo um estranho objeto: um bloco duro como pedra, do tamanho de uma bola de futebol e cheio de pequenos buracos.

Ele tem a aparência de algo do espaço sideral, mas sua origem é terrena, as águas intertidais da costa da Califórnia.

O bloco é um tipo de lar, ocupado por uma colônia da espécie Phragmatopoma californica, também conhecida em inglês como "sandcastle worm" (verme do castelo de areia). Na verdade, é mais um condomínio residencial.

Cada buraco é a entrada de um tubo separado, cada um construído sobre o outro por diferentes vermes.

A P. californica faz um excelente trabalho de construção em seu tubo, um abrigo do qual ela nunca sai, usando apenas grãos de areia e pequenos pedaços de concha.

Mas o animal não passa tanto tempo cimentando a obra quanto um operário de construção. Ao invés disso, ele usa um órgão especializado em sua cabeça, que produz uma quantidade microscópica de cola, pronta para ser colocada na estrutura existente. Depois, outro grão é disposto sobre o local e o animal espera firmar.

O mais extraordinário - e a razão de esses animais estarem no laboratório de Stewart, longe de seu habitat nativo - é que tudo isso é feito debaixo d¿água.

"Adesivos feitos pelo homem são muito impressionantes", disse Stewart, um professor associado de bioengenharia da universidade.

"É possível colar aviões com eles. Mas esse animal cola coisas debaixo d¿água há centenas de milhões de anos, algo que ainda não conseguimos fazer."

Stewart é um dos vários pesquisadores ao redor do mundo desenvolvendo adesivos que funcionam em condições úmidas, usando vermes, mexilhões, cirrípedes e outras criaturas marinhas como seus guias.

Embora existam muitas possíveis aplicações - a Marinha americana, por exemplo, tem um interesse natural na pesquisa e financia parte dela -, o maior objetivo é criar colas que possam ser utilizadas no ambiente úmido fundamental: o corpo humano.

É cedo demais para declarar que o trabalho dos pesquisadores é um sucesso, mas eles estão testando adesivos em ossos animais e outros tecidos, e estão otimistas de que suas abordagens irão funcionar.

"Já teria passado a estudar outra coisa se não acreditasse nisso", disse o doutor Phillip B. Messersmith, professor da Universidade Northwestern que está desenvolvendo adesivos com base nas substâncias produzidas por mexilhões e testando se eles podem ser usados para reparar rupturas em sacos amnióticos e outras aplicações.

Embora colas de pele - a maioria da variedade cianocrilato, ou supercola - já existam no mercado, sua efetividade é limitada.

Elas muitas vezes não podem ser usadas, por exemplo, em incisões em que a pele é repuxada ou esticada, ou devem ser usadas acompanhadas de suturas ou grampos.

Adesivos fortes o bastante para colar a pele sob tensão, ou reparar um osso ou outros tecidos internos - sem convidar o ataque do sistema imunológico - ainda não foram obtidos pelos pesquisadores.

A natureza mostra que isso é possível, disse o doutor J. Herbert Waite, professor da Universidade da Califórnia, Santa Barbara, que fez a maior parte do trabalho inicial de identificar os adesivos que os mexilhões usavam para aderir a rochas e outras superfícies.

Mas os pesquisadores deveriam ver a abordagem da natureza como um guia geral, afirma ele, e não como um caminho exato.

"Na minha opinião sobre pesquisas ou materiais de inspiração biológica, quase sempre acredito não ser seguro se apegar submissamente à substância química específica", Waite disse, "mas sim extrair os conceitos importantes que podem ser reproduzidos."

Assim, o objetivo desses pesquisadores não é duplicar os adesivos naturais que funcionam bem debaixo d'água, mas imitá-los e criar colas que sejam ainda mais adequadas a humanos.

"Queremos pegar elementos de adesivos criados por químicos e combiná-los a elementos únicos que a natureza usa", Stewart disse.

Adesivos sintéticos podem não só funcionar melhor, mas também podem ser produzidos em grandes quantidades.

Organismos marinhos fabricam suas colas em quantidades muito pequenas - a gotícula típica produzida pela P. californica, por exemplo, é da ordem de 100 picolitros.

Mesmo se a substância pudesse ser coletada antes de secar, seriam necessárias 50 milhões de gotículas para preencher uma colher de chá.

"No fim das contas, a maior razão para a pesquisa é tentar conseguir uma quantidade maior da substância", disse o doutor Jonathan Wilker, professor associado de química inorgânica da Universidade Purdue, que trabalha em análogos dos adesivos dos mexilhões e estuda também ostras, cirrípedes e outros organismos.

Mas existem vários empecilhos para a produção de colas que funcionem debaixo d'água, Wilker disse.

"Um deles é que sempre que a superfície é muito molhada, a cola adere à camada de água, e não à superfície em si. Por isso, ela desgruda."

Outra é que, para aderir, as colas precisam de um ambiente com pouca ou nenhuma água - elas precisam secar.

A maioria das colas não adere debaixo d¿água, apenas aquelas que tendem a secar assim que são expelidas em meio à água. Além disso, diz Messersmith, como acontece com toda cola, "a aderência é algo complicado, mesmo quando parece muito simples."

"Existem processos acontecendo na interface entre adesivo e superfície, e existe a força do adesivo em si", disse. "Se temos um, mas não o outro, não conseguimos nada, porque em algum lugar, teremos um ponto fraco no sistema e ele se romperá."

A P. californica resolve seus problemas debaixo d¿água impecavelmente. As proteínas que são a base do adesivo contêm grupos de fosfato e amina, fragmentos moleculares conhecidos por promoverem a aderência. "Esses cadeias laterais são provavelmente o que faz a cola aderir à superfície de imediato", Stewart disse.

O animal produz a cola em duas partes do corpo, com diferentes proteínas e grupos laterais em cada.

Produzidas em glândulas separadas, as substâncias se juntam apenas quando secretadas, como uma resina epóxi. Ao se misturarem, elas formam um composto que, embora seja à base d'água, não dissolve.

A cola adere inicialmente em cerca de 30 segundos, um processo provavelmente desencadeado pela mudança abrupta de acidez - ela é muito mais ácida do que a água do mar, diz Stewart.

Ao longo das seis horas seguintes, o adesivo endurece completamente, à medida que ligações cruzadas se formam entre as proteínas.

"Ela se transforma em um material com a consistência do couro de sapato", ele disse. "Ela continua flexível, mas é muito resistente."

Como outros pesquisadores, Stewart decidiu usar polímeros sintéticos como a estrutura de seu adesivo, e ignorou muitos outros aspectos da substância química produzida pela P. californica.

"Quem falou que os aminoácidos específicos são importantes?", ele disse, citando um exemplo. "Eles são apenas algo com o qual o animal convive.

Por outro lado, se decidirmos simplesmente que talvez a parte de fato importante sejam as cadeias laterais, é muito simples copiar isso com um polímero sintético."

O adesivo de Stewart forma o que os químicos chamam de um complexo coacervado, um tipo de círculo molecular que barra a água. Portanto, ele é um líquido injetável e imiscível.

"Perfeito para um adesivo subaquático protegido da água -, ele disse. Mas diferente da P. californica, ele pode modificar a substância química para fazê-la secar com mais ou menos rapidez, dependendo da aplicação.

Stewart diz que a cola parece ser poderosa o bastante para consertar fraturas em ossos crâniofaciais, uma aplicação que ele está estudando em ratos.

Ele também acredita que ela possa ser útil para reparar incisões na córnea e para consertar outras fraturas ósseas com mais precisão, ancorando pequenos pedaços que não podem ser segurados com pinos ou parafusos. "Mas não temos nenhuma fantasia sobre colar fêmures", ele disse.

Stewart trabalha com a P. californica desde 2004 e recentemente começou a estudar outro grupo de criaturas que constroem tubos, as larvas da mosca d¿água.

Praticantes da pesca com mosca conhecem esses organismos, que habitam o leito de riachos de água doce durante a incubação das moscas.

As larvas constroem os tubos da mesma forma que a P. californica, mas com uma cola muito diferente - fios de seda que aderem aos grãos de areia, unindo-os.

Em algum estágio evolucionário, dezenas de milhões de anos atrás, as moscas tinham parentesco com o bicho da seda, por isso, o fato de produzirem seda não é surpresa. "Com a diferença de que é uma seda grudenta e subaquática", Stewart disse.

Ele está começando a estudar as características da seda e entender como as moscas a produzem, mas o objetivo futuro é o mesmo da P. californica.

"Queremos tentar reproduzir isso algum dia em breve, e produzir fibras subaquáticas", ele disse. "Polímeros subaquáticos protegidos da água que podem ter alguma aplicação médica."

Uma grande preocupação com qualquer cola sintética, a despeito de sua similaridade com a substância de um ser vivo, é a biocompatibilidade. "Podemos conseguir resolver os problemas de aderência", Messersmith disse, "mas então nos deparamos com os problemas biológicos."

Existem supercolas médicas com uma aderência poderosa, ele disse, "mas esses materiais são altamente imunogênicos."

Stewart disse que até agora constatou pouca inflamação nos estudos com ratos, e pouca ou nenhuma evidência de toxidade ou inibição da cicatrização óssea.

Mas ele observou que, como o objetivo seria obter uma cola que acabasse se decompondo, certa reação do corpo seria necessária.

Com a cola de osso, por exemplo, "é desejável que ela se decomponha mais ou menos no mesmo ritmo que o osso cicatriza", ele disse.

Por isso, em versões degradáveis de colas de polímeros sintéticos, Stewart na verdade acrescenta de volta algumas proteínas que podem ser atacadas ou quebradas por células especializadas. "Não seria desejável ficar com essa cola plástica nos ossos pelo resto da vida", ele disse.


Fonte: Terra


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...