terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Pesquisa de mestrado mostra a umbanda sob uma ótica social



Doutrina que traz do candomblé o culto aos orixás tem fortes ligações com a história cultural do país, indica estudo desenvolvido em Ribeirão Preto. Religião organiza por categorias os espíritos incorporados pelos médiuns.

Durante dois anos e oito meses, o pesquisador Rafael de Nuzzi Dias, católico, despiu-se de preconceitos e visitou quatro segmentos de terreiros de umbanda em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, para desenvolver um estudo.

A experiência resultou na dissertação de mestrado Correntes ancestrais: os pretos-velhos do Rosário, que buscou compreender a doutrina sob a ótica social. Uma das mais importantes reflexões que podem ser apreendidas com a pesquisa é que o umbandismo está intimamente ligado à história cultural do Brasil.

Negros, europeus e índios formaram o país. Bebendo das características religiosas dessa fonte, surgiu em 1908, no estado do Rio de Janeiro, a umbanda em todo o seu sincretismo.

A religião orgulha-se em afirmar que é genuinamente brasileira. Segundo a Federação Brasileira de Umbanda, são cerca de 5,3 mil terreiros afiliados no país atualmente.

Mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Rafael faz parte do grupo que integra o Laboratório de Etnopsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em Ribeirão Preto (FFCLRP/USP), coordenado pelo professor José F. Miguel H. Bairrão.

O objetivo do seu trabalho foi tentar entender como a cultura, símbolos e dispositivos que compõem os saberes são usados para elaborar questões que podiam ser chamadas de psicológicas.

Com a aplicação da etnopsicologia, relativa às raças, procurou-se compreender como a cultura religiosa modela o lado psicológico do indivíduo.



A umbanda, que traz do candomblé o culto aos orixás, é uma religião de possessão que organiza por categorias os espíritos incorporados pelos médiuns.

Seu fundamento é a caridade, ajudar o próximo, premissa encontrada tanto no espiritismo, quanto no catolicismo. “Os pretos-velhos se apresentam como escravos, mas no sentido amplo, não só do personagem histórico colonial. Ele tenta mostrar que existe na vida uma dimensão de opressão. A redenção se obtém pelo sofrimento, assim como em Cristo. Experiência que propicia desenvolvimento, aproxima de Deus”, esclarece Rafael Dias.

O pesquisador conta que é possível também perceber a presença dos ensinamentos indígenas por meio da entidade cabocla e pelo valor que os umbandistas dão às ervas.

“No terreiro é comum as pessoas que vão se consultar, gratuitamente, saírem com receitas de banhos ou chás. Boldo, guiné, arruda, alecrim... O índio trouxe a sabedoria desse conhecimento orgânico da natureza”, ressalta o psicólogo.


Carma


Da concepção espírita vem a ideia de encarnação e do carma. Os seguidores da umbanda acreditam que todos já tiveram várias vidas na Terra e que voltam a ela para uma evolução espiritual.

Já em referência ao catolicismo, todos os terreiros têm a imagem de Jesus Cristo em posição de destaque, mas dificilmente se vê a representação do Cristo na cruz. “A ênfase é no Jesus da sabedoria”, justifica Dias.

Para escolher os terreiros que seriam estudados, o psicólogo fez um trabalho-piloto de campo e por questões subjetivas, como receptividade, determinou os lugares.

No grupo havia algumas comunidades mais esotéricas e outras mais voltadas para as raízes africanas. Segundo ele, os terreiros podem ser pequenos (15 a 20 médiuns e até 20 pessoas na assistência) ou bem maiores (150 médiuns).

Essa parte inicial do projeto foi essencial para determinar que os pretos-velhos seriam as divindades a serem analisadas. “Eles me chamaram a atenção por serem sábios e terem posição de destaque entre as entidades. (...) Percebi também o quanto são importantes para a organização do terreiro e que são referência de ancestralidade, embora os seguidores não confirmem essa ligação, porque, para eles, o espírito perde esse direito”, explica.

Dias participou de várias giras (ritual de umbanda) públicas, pelo menos uma vez por semana, em horário alternados. “Acabei desenvolvendo uma relação de confiança mútua. Muitos dados foram coletados em conversas informais”, explica Rafael, acrescentando que o terreiro Padre José Rosário foi eleito como caso-modelo para apresentação dos resultados e análises.


Choque


A primeira experiência em uma sessão “foi um choque”, como relata. “Nunca tinha tido contato com religiões mediúnicas. Você tem a sensação clara de que está diante de outra pessoa”, explica.

Apesar desse primeiro impacto, o psicólogo seguiu com seu objetivo e entrevistou não somente os médiuns, como também os espíritos incorporados. Tudo está registrado em áudio e fotos, com a autorização dos participantes.

Ele conta que as pessoas recorrem aos terreiros com as mais variadas demandas: irmão desempregado, filho doente, problema amoroso etc. Algumas delas, ao frequentar o espaço, sentem coisas diferentes e descobrem que têm mediunidade.

“Os médiuns são pessoas que começam a ter algum tipo de contato com o sobrenatural. Eles têm sensibilidade: ouvem vozes, sentem, sonham com frequência com figuras de escravos ou índios. E isso é interpretado como um chamado para prestar caridade no terreiro de umbanda”, descreve.

Nesse ponto também podem ser percebidos sinais da concepção kardecista, doutrina difundida pelo professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (que usou o pseudônimo Allan Kardec para divulgar o espiritismo) nos idos dos anos 1860. “Tanto o espírito quanto o médium estariam ali para evoluírem”, relata.

Para Rafael Dias, assim como a psicanálise transforma a pessoa pela palavra, a relação preto-velho/indivíduo (médium/espírito) faz com que o sujeito dê novos significados a sentimentos conflitantes e encontre a conciliação com seu próprio inconsciente.

“A mente é um mundo de ideias, quando elas entram em choque surgem doenças mentais. Na terapia, com a conversa, você pode mudar a vida de um paciente. Essa mediação também se provou possível por meio do universo simbólico da umbanda”, afirma o pesquisador.


Tolerância à diversidade


A relação da umbanda com outras crenças é de pura tolerância, diz o diretor cultural da Federação Brasileira de Umbanda, José Carlos Gentil da Silva. “Os terreiros são abertos à chegada de visitantes.” E faz questão de esclarecer a equívoca associação da umbanda com práticas do mal.

“A palavra macumba refere-se a um instrumento musical africano e ganhou sentido pejorativo pela cultura popular. Os rituais para o mal, que sujam as cidades, são mesclados de magia comum que se utilizam do guarda-chuva da palavra para se resguardar. Existe uma doutrinação na umbanda voltada para o bem”, afirma.


Antonio César Perri de Carvalho, secretário-geral do Conselho Federativo Nacional da Federação Espírita Brasileira, ressalta a importância do respeito à diversidade religiosa.

“Deve haver somatória de esforços quando existe um objetivo em comum: a caridade.” São quatro tipos de giras (rituais) da umbanda: desenvolvimento (preparação de novos médiuns), caridade, festiva e de estudo e doutrinação de valores evangélicos.


Legalização só em 1940


A umbanda foi criada em Niterói (RJ) em 1908, por Zélio Fernandino de Morais,comentão 17 anos de idade. Ele sofria de estranhos” ataques, que seriam manifestações do Caboclo das Sete Encruzilhadas, espírito antigo de homem mestiço que libertava escravos no estado do Rio de Janeiro.

Depois de procurar ajuda no espiritismo e a entidade ter sido considerada um espírito atrasado e não merecedor de continuar na sessão, Zélio organizou os rituais e estabeleceu o fundamento de uma nova crença que seria marcada pela caridade, por meio do auxílio espiritual com consultas.

Como não havia liberdade religiosa, muitos terreiros que tinham rituais afros foram destruídos no Brasil. Em meados da década de 1940, a prática da umbanda foi legalizada.



Fonte: Estado de Minas

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