sábado, 31 de março de 2012

Do coração ao Paraíso: o guia egípcio da eternidade

 Livro dos Mortos, feitiço 17, do Papiro de Ani (Wikicommons)



Quarenta e duas portas trancadas. Sob a vigia de escorpiões enormes e esfomeados, o leitor deixará de existir caso erre a resposta às perguntas de quarenta e dois seres divinos. 


Terá que enfrentar a cerasta, uma das serpentes mais mortíferas. O escaravelho revelará o seu coração no julgamento final e há um livro que lhe dá a chave para o Paraíso. Boa sorte!


Há vida depois da morte. Pelo menos, assim acreditavam os egípcios na altura do Império Novo, mais de mil e duzentos anos antes de Cristo. Quando o sol inicia a sua jornada nocturna, a travessia da alma do morto é feita num barco.

Os amuletos que traz consigo colados ao corpo são o passaporte para o Além. Os rituais fúnebres e a mumificação dos mortos (processo em que se retiram os principais órgãos do corpo morto, dificultando a sua decomposição) advinham os obstáculos que se aproximam e são o veículo para o morto desfrutar a vida eterna.

Há um livro que contém as instruções e encantamentos para vencer no Álem e que acompanha a fase pós-vida. Páginas em papiro, colocadas numa caixa decorada com a imagem de Osíris, deus do Além, junto ao sarcófago formam O Livro dos Mortos.



Nascer do sol na Criação (Wikicommons)


Apenas acessível à realeza e nobreza egípcia, o Livro dos Mortos é o manual de instruções que permite superar os obstáculos na nova vida, a salvação das almas e que conduz ao Paraíso. 



Desconhece-se o autor, porém, acredita-se que era replicado em série por quem dominasse a arte dos hieróglifos, ou seja, os sinais de escrita da antiga civilização egípcia.



No período pós-vida, qualquer morto tem como objetivo entrar no campo dos juncos, o local abençoado que promete a eternidade.


Contudo, o caminho está armadilhado e qualquer erro pode ser fatal. Mais do que ser devorado por criaturas ou seres divinos, o maior castigo é cair no esquecimento (deixar de existir!).



Livro dos Mortos, feitiços 144 e 145, do Papiro de Ani (Wikicommons)


Saudações a Anúbis (deus da mumificação, rituais fúnebres e da vida após a morte)! É o guia que ajuda os mortos em todo o seu trajeto.

Mas desengane-se quem pensar que ele os protege. A sua tarefa é apenas garantir que o julgamento seja justo. Os sentidos também são recuperados nesta nova vida pelo feitiço concretizado por este deus, o feitiço da Abertura da Boca (número 23 do Livro). Todos os sentidos (visão, paladar, tacto, olfacto e audição) trancados no processo de mumificação, são agora despertados.

Não estarás só na execução de trabalhos manuais se trouxeres o capítulo 6 do livro dos mortos. O espírito é replicado em pequenos clones que executarão esses trabalhos. 



Os hieróglifos sobre papiro ainda desvendam o encantamento que permite fazer face a uma das serpentes mais horripilantes do mundo. Há que parti-la ao meio para evitar que esta salte e engula a viagem.



Livro dos Mortos, do Papiro de Pinedjem II, Pinedjem II numa oferenda ao Deus Osíris (Wikicommons)


Até à sala de julgamento, enfrentarás quarenta e dois deuses, guardiões de quarenta e duas portas diferentes. Para cada um deles, deverás renegar que cometeste diferentes pecados.Os critérios de avaliação seguem os juízos morais e a sua checklist tem por base os quarenta e dois mandamentos (muito semelhantes aos dez mandamentos presentes na Bíblia). 



As palavras da inocência e defesa da confissão negativa encontram-se presentes no Livro dos Mortos: “Não causei sofrimento aos homens. Não empreguei violência contra os meus parentes. Não substitui a justiça pela injustiça.. Não trabalhei em meu proveito em excesso.. Não matei e não mandei matar.. Não monopolizei jamais os campos de cultivo”. Cada hesitação ou silêncio ativam as quelas (garras em forma de pinça) dos escorpiões que vigiam as portas.



Segue-se o momento decisivo para a entrada no Paraíso: o teste da pesagem do coração. O coração é o músculo da Alma e inteligência que bombeia as emoções fortes, os pensamentos e a essência do ser. Sendo um órgão frágil, precisa de proteção sob a forma de um escaravelho (símbolo do renascimento no Egito, associado ao sol nascente). 


Este momento exige calma e serenidade, uma vez que o escaravelho do coração é pesado numa balança e comparado com a pena da deusa Maat que personifica a verdade, justiça, ordem e equilíbrio. 


A confiança na pureza do coração só ocorre quando o escaravelho do coração atinge o mesmo peso que a pena. Caso contrário, a alma é devorada pelo ser monstruoso Ahmit e considerada culpada na Sala de Julgamentos.



Detalhe do Livro dos Mortos, do Papiro de Sesostris (Wikicommons)
Detalhe do Livro dos Mortos, Anubis pesando o coração de Hunefer (cena semelhante no Papiro de Ani) (Wikicommons)



O livro dos Mortos permite ainda controlar o próprio coração. Nas costas do escaravelho, está inscrito o encantamento “Não menti, não roubei, não enganei, meu coração é bom”. A oração “Meu coração, não te oponhas a mim no tribunal. Não te mostres hostil a mim. Não digas mentiras sobre mim na presença dos deuses” permite controlar o pulsar do coração e das suas emoções.



Reza a história que Ani, escriba real – encarregado de registar todas as oferendas aos deuses – conseguiu a chave da vida eterna através do cumprimento das instruções do livro dos mortos. Preocupado com o seu lugar no outro mundo e assombrado com o dilema de cuidar do presente ou da eternidade, conseguiu entrar no Paraíso.


 Detalhe do Livro dos Mortos, hieroglifos (Wikicommons)



Carl Richard Lepsius (1810-1884), Egiptologista e linguista, primeiro tradutor de um manuscrito completo do Livro dos Mortos (Wikicommons)



Atualmente, o costume de colocar flores nos túmulos, o ato de conversar com os mortos, a presença dos dez mandamentos, etc., leva a crer que alguns elementos da cultura do Antigo Egito, no que toca a estes rituais, passaram através dos tempos.




Fonte: Obvious

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