Quarenta e duas portas trancadas. Sob a vigia de escorpiões enormes e
esfomeados, o leitor deixará de existir caso erre a resposta às
perguntas de quarenta e dois seres divinos.
Terá que enfrentar a
cerasta, uma das serpentes mais mortíferas. O escaravelho revelará o seu
coração no julgamento final e há um livro que lhe dá a chave para o
Paraíso. Boa sorte!
Há vida depois da morte. Pelo menos, assim acreditavam os egípcios na
altura do Império Novo, mais de mil e duzentos anos antes de Cristo.
Quando o sol inicia a sua jornada nocturna, a travessia da alma do morto
é feita num barco.
Os amuletos que traz consigo colados ao corpo são o
passaporte para o Além. Os rituais fúnebres e a mumificação dos mortos
(processo em que se retiram os principais órgãos do corpo morto,
dificultando a sua decomposição) advinham os obstáculos que se aproximam
e são o veículo para o morto desfrutar a vida eterna.
Há um livro que
contém as instruções e encantamentos para vencer no Álem e que acompanha
a fase pós-vida. Páginas em papiro, colocadas numa caixa decorada com a
imagem de Osíris, deus do Além, junto ao sarcófago formam O Livro dos Mortos.
Apenas acessível à realeza e nobreza egípcia, o Livro dos Mortos é o
manual de instruções que permite superar os obstáculos na nova vida, a
salvação das almas e que conduz ao Paraíso.
Desconhece-se o autor,
porém, acredita-se que era replicado em série por quem dominasse a arte
dos hieróglifos, ou seja, os sinais de escrita da antiga civilização
egípcia.
No período pós-vida, qualquer morto tem como objetivo entrar no campo
dos juncos, o local abençoado que promete a eternidade.
Contudo, o
caminho está armadilhado e qualquer erro pode ser fatal. Mais do que ser
devorado por criaturas ou seres divinos, o maior castigo é cair no
esquecimento (deixar de existir!).
Saudações a Anúbis (deus da mumificação, rituais fúnebres e da vida
após a morte)! É o guia que ajuda os mortos em todo o seu trajeto.
Mas
desengane-se quem pensar que ele os protege. A sua tarefa é apenas
garantir que o julgamento seja justo. Os sentidos também são recuperados
nesta nova vida pelo feitiço concretizado por este deus, o feitiço da
Abertura da Boca (número 23 do Livro). Todos os sentidos (visão,
paladar, tacto, olfacto e audição) trancados no processo de mumificação,
são agora despertados.
Não estarás só na execução de trabalhos manuais se trouxeres o
capítulo 6 do livro dos mortos. O espírito é replicado em pequenos
clones que executarão esses trabalhos.
Os hieróglifos sobre papiro ainda
desvendam o encantamento que permite fazer face a uma das serpentes
mais horripilantes do mundo. Há que parti-la ao meio para evitar que
esta salte e engula a viagem.
Até à sala de julgamento, enfrentarás quarenta e dois deuses,
guardiões de quarenta e duas portas diferentes. Para cada um deles,
deverás renegar que cometeste diferentes pecados.Os critérios de
avaliação seguem os juízos morais e a sua checklist tem por
base os quarenta e dois mandamentos (muito semelhantes aos dez
mandamentos presentes na Bíblia).
As palavras da inocência e defesa da
confissão negativa encontram-se presentes no Livro dos Mortos: “Não
causei sofrimento aos homens. Não empreguei violência contra os meus
parentes. Não substitui a justiça pela injustiça.. Não trabalhei em meu
proveito em excesso.. Não matei e não mandei matar.. Não monopolizei
jamais os campos de cultivo”. Cada hesitação ou silêncio ativam as quelas (garras em forma de pinça) dos escorpiões que vigiam as portas.
Segue-se o momento decisivo para a entrada no Paraíso: o teste da
pesagem do coração. O coração é o músculo da Alma e inteligência que
bombeia as emoções fortes, os pensamentos e a essência do ser. Sendo um
órgão frágil, precisa de proteção sob a forma de um escaravelho (símbolo
do renascimento no Egito, associado ao sol nascente).
Este momento
exige calma e serenidade, uma vez que o escaravelho do coração é pesado
numa balança e comparado com a pena da deusa Maat que personifica a
verdade, justiça, ordem e equilíbrio.
A confiança na pureza do coração
só ocorre quando o escaravelho do coração atinge o mesmo peso que a
pena. Caso contrário, a alma é devorada pelo ser monstruoso Ahmit e
considerada culpada na Sala de Julgamentos.
Detalhe do Livro dos Mortos, Anubis pesando o coração de Hunefer (cena semelhante no Papiro de Ani) (Wikicommons)
O livro dos Mortos permite ainda controlar o próprio coração. Nas costas do escaravelho, está inscrito o encantamento “Não menti, não roubei, não enganei, meu coração é bom”. A oração “Meu
coração, não te oponhas a mim no tribunal. Não te mostres hostil a mim.
Não digas mentiras sobre mim na presença dos deuses” permite controlar o pulsar do coração e das suas emoções.
Reza a história que Ani, escriba real – encarregado de registar todas
as oferendas aos deuses – conseguiu a chave da vida eterna através do
cumprimento das instruções do livro dos mortos. Preocupado com o seu
lugar no outro mundo e assombrado com o dilema de cuidar do presente ou
da eternidade, conseguiu entrar no Paraíso.
Carl Richard Lepsius (1810-1884), Egiptologista e linguista,
primeiro tradutor de um manuscrito completo do Livro dos Mortos
(Wikicommons)
Atualmente, o costume de colocar flores nos túmulos, o ato de
conversar com os mortos, a presença dos dez mandamentos, etc., leva a
crer que alguns elementos da cultura do Antigo Egito, no que toca a
estes rituais, passaram através dos tempos.
Fonte: Obvious
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