Litografia colorida de Jean-Baptiste Debret que retrata o mercado de escravos na rua do Valongo. (imagem: reprodução)
O uso de técnicas
modernas para analisar ossos e dentes provenientes de um cemitério de
escravos descoberto sob a zona portuária do Rio de Janeiro traz
informações sobre os africanos trazidos ao Brasil colonial, como mostra
artigo na CH de abril.
O Rio de Janeiro foi palco de capítulos marcantes da história da
escravidão no Brasil. Por décadas foram desembarcados, comercializados e
enterrados em sua área portuária milhares de escravos vindos da África,
na maior das diásporas humanas conhecidas.
No contexto brasileiro, o Rio de Janeiro foi a grande capital da
empresa escravagista, já que seus portos – segundo historiadores como o
norte-americano Herbert S. Klein e o brasileiro Manolo Florentino –
receberam cerca de metade dos africanos trazidos para a América
portuguesa. Por isso, a cidade tem grande importância nos estudos sobre o
tráfico negreiro.
Em 1996, um achado acidental, durante a reforma de uma casa na
Gamboa, confirmou que sob a malha urbana estava situado um dos mais
importantes cemitérios de escravos conhecidos no Brasil.
A localização
do Cemitério dos Pretos Novos (criado em 1769 e extinto em 1830), um
sítio histórico e arqueológico único na América, havia sido perdida
devido ao intenso crescimento urbano ocorrido na área do Valongo (que
abrange os atuais bairros de Gamboa e Saúde) após seu fechamento oficial
em 1830.
Esse cemitério seria utilizado majoritariamente para abrigar os
corpos de africanos que morriam antes de serem vendidos (daí a expressão
‘pretos novos’), o que constitui uma memória importantíssima e, ao
mesmo tempo, um terrível testemunho desse processo histórico.
Reconhecido pela memória local como um dos marcos da história da
escravidão, o cemitério é hoje objeto de interesse de instituições de
patrimônio histórico, de cientistas e sobretudo da comunidade da Gamboa.
O Cemitério dos Pretos Novos foi criado por Luís Melo Silva
Mascarenhas (1729-1790), o marquês do Lavradio, então vice-rei do
Brasil, por conta da transferência do porto de desembarque dos escravos
do cais da praça XV, no centro da cidade, para o Valongo, na época fora
dos limites urbanos.
Para o novo cemitério foi demarcada uma quadra com lados de 50 braças
(tamanho aproximado de um campo oficial de futebol), terreno apontado
em mapas e documentos de época.
Segundo registros históricos, podia ser
avistado dos trapiches e armazéns do mercado, de onde os escravizados
teriam continuamente a visão aterradora do ir e vir dos corpos. Os
cadáveres por vezes permaneciam dias insepultos, até que alguém os
cobrisse precariamente com alguma terra.
Situado em área aberta e arenosa da praia da Gamboa, próximo ao morro
da Saúde, esse cemitério passou a receber os enterros feitos
anteriormente no largo de Santa Rita, em frente à igreja de mesmo nome,
hoje no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
O historiador Júlio César
Pereira, que pesquisou os arquivos da igreja, revelou que, nos últimos
seis anos de uso do cemitério do Valongo, foi superada a média de mil
enterros por ano.
O estudo de ossos e dentes ainda presentes na área desse cemitério,
que teria recebido dezenas de milhares de corpos, segundo estimativas de
alguns autores, é muito importante para aprofundar o conhecimento sobre
os africanos escravizados e trazidos ao Brasil colonial.
Arcada dentária com polimento dos dentes, associado ao uso de plantas na higiene dentária. (foto: Sheila M. Souza)
Embora o cemitério nunca tenha sido objeto de escavações
sistemáticas, o salvamento de 1996 proporcionou uma pequena coleção de
dentes e ossos humanos dispersos, estudados inicialmente pela
bioarqueóloga Lilia Cheuiche Machado (1938-2005), do Instituto de
Arqueologia Brasileira, onde está hoje o acervo. Foram também
recuperadas contas de vidro, louça e outros materiais relacionados ao
contexto urbano do Rio de Janeiro e à escravidão.
A pesquisadora confirmou fatos descritos na literatura histórica,
como a queima dos corpos e seu enterro em valas comuns, e verificou a
predominância de jovens e de indivíduos do sexo masculino, resultado
consistente com a população preferencial para o tráfico. Infelizmente, o
estudo do material ficou inconcluso, devido ao falecimento de Lilia
Machado.
Recentemente, um grupo de pesquisadores que já acumulam estudos sobre
populações do passado, inclusive sobre os temas de escravidão e
afrodescendência na América, retomou a pesquisa dos remanescentes
humanos recuperados no Cemitério dos Pretos Novos.
Os novos projetos
multidisciplinares, apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio
de Janeiro (Faperj) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), visam caracterizar melhor as origens
dos indivíduos e descrevê-los em aspectos antes não estudados.
Fonte: Ciência Hoje
Nenhum comentário:
Postar um comentário