A música acompanha a humanidade desde seus primórdios como elemento que envolve e emociona as pessoas.
Nos últimos anos, estudos científicos têm
mostrado que a musicalização e o aprendizado de um instrumento também
podem ajudar na assimilação de conteúdos trabalhados em disciplinas que
exigem raciocínio lógico e concentração.
A razão disso é a estimulação
de regiões do cérebro ativadas especialmente no estudo de matérias como
matemática e línguas, que também atuam no processamento e produção de
sentido e emoção da música.
De acordo com Aurilene Guerra, mestre em neuropsicologia e professora de
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a escuta ativa exige o
desenvolvimento da capacidade de concentração, além de promover a
criatividade por meio da sensibilização do aluno.
"Na última década, houve uma grande expansão nos conhecimentos das bases
neurobiológicas do processamento da música, favorecida pelas novas
tecnologias de neuroimagem", conta Aurilene.
Os estudos científicos
comprovaram que o cérebro não dispõe de um "centro musical", mas coloca
em atividade uma ampla gama de áreas para interpretar as diferentes
alturas, timbres, ritmos e realizar a decodificação métrica,
melódico-harmônica e modulação do sistema de prazer e recompensa
envolvido na experiência musical.
"O processo mental de sequencialização e espacialização envolve altas
funções cerebrais, como na resolução de equações matemáticas avançadas, e
que também são utilizadas por músicos na performance de tarefas
musicais", explica Aurilene.
Aurilene explica que o processamento da música começa com a penetração
das vibrações sonoras no ouvido interno, provocando movimentos nas
células ciliares que variam de acordo com a frequência das ondas. Os
estímulos sonoros seguem pelo nervo auditivo até o lobo temporal, onde
se dá a senso-percepção musical: é nesse estágio que são decodificados
altura, timbre, contorno e ritmo do som.
O lobo temporal conecta-se em
circuitos de ida e volta com o hipocampo, uma das áreas ligadas à
memória, o cerebelo e a amígdala, áreas que integram o chamado cérebro
primitivo e são responsáveis pela regulação motora e emocional, e ainda
um pequeno núcleo de massa cinzenta, relacionado à sensação de bem-estar
gerada por uma boa música.
"Enquanto as áreas temporais do cérebro são aquelas que recebem e
processam os sons, algumas áreas específicas do lobo frontal são
responsáveis pela decodificação da estrutura e ordem temporal, isto é,
do comportamento musical mais planejado", acrescenta Aurilene.
Segundo a professora, estudos científicos apontaram uma correspondência
significativa entre a instrução musical nos primeiros anos de vida e o
desenvolvimento da inteligência espacial, responsável por estabelecer
relações entre itens e que favorece as habilidades matemáticas,
necessárias ao fazer musical no processo de divisão de ritmos e contagem
de tempo.
Porém, para aproveitar os benefícios da aprendizagem, é necessário que a
motivação parta do próprio estudante. Aurilene cita estudos que colocam
que as diferenças individuais entre crianças são imensas e não parecem
ser reduzidas por meio do treinamento, já que a habilidade musical
envolve uma grande predisposição genética.
Mesmo que nem todos os alunos
estejam destinados a se tornar profissionais, o processo de
interpretação musical desenvolve em certo nível a coordenação motora,
concentração e raciocínio lógico, além de ser uma atividade que
proporciona bem-estar, otimizando a fixação de conteúdos.
"No contexto escolar, a música tem a finalidade de ampliar e facilitar a
aprendizagem do aluno", diz Aurilene. "Ela favorece muito o
desenvolvimento cognitivo e sensitivo, envolvendo o aluno de tal forma
que ele realmente cristalize na memória uma situação."
Os benefícios na prática
O reconhecimento da importância do estudo da música para o
desenvolvimento e formação pessoal dos alunos já foi formalizado pelo
governo em 2008, com a sanção da Lei nº 11.769. A medida torna
obrigatório, mas não exclusivo, o ensino da música na educação básica - o
que significa que a atividade pode ser integrada a disciplinas como
artes, sem constituir uma matéria específica.
Isso contribuiu para o
veto do artigo que determinava que as aulas fossem ministradas por
profissionais da área, alegando-se ainda que muitos músicos em atividade
no país não tinham formação especializada para exercer a profissão.
Questões como a concepção de música como conteúdo, em vez de disciplina,
e a falta de profissionais capacitados para o ensino da atividade devem
entrar na pauta de discussões do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Por fim, a lei estabelecia um limite de três anos letivos para que as
instituições de ensino implantassem a atividade na grade curricular.
Com o encerramento do prazo em 2011, ainda não existem dados
estatísticos sobre a implantação da atividade nas escolas, mas o
Ministério da Educação pretende desenvolver uma pesquisa para levantar
experiências que tiveram sucesso e possam ser replicadas.
Um dos
exemplos bem-sucedidos que ampliou suas atividades com o advento da lei é
o projeto Música nas Escolas, desenvolvido desde 2003 em Barra Mansa,
região sul do Rio de Janeiro.
A iniciativa atua em escolas da rede municipal desde a educação infantil
até o nono ano do ensino fundamental e é mantida por recursos da
Secretaria Municipal de Educação, recebendo apoio de empresas privadas
como a Light e a Votorantim.
A ideia surgiu como uma tentativa de
reestruturar as atividades de iniciação musical já existentes em
colégios e creches do município, cuja oferta era limitada e pouco
qualificada. Atualmente, o projeto atende 22 mil jovens e dispõe de uma
orquestra sinfônica que já trabalhou com renomados solistas nacionais e
estrangeiros.
Vantoil de Souza, coordenador do Música nas Escolas e diretor artístico
da orquestra sinfônica conta que o projeto oferece atividades
obrigatórias e optativas aos estudantes.
O trabalho de musicalização
realizado em classe por monitores qualificados inclui matérias como
percepção musical, desenvolvimento rítmico e prática de canto e canto
coral; a partir da 6ª série, as aulas são inseridas na disciplina de
Educação Artística.
Como atividade facultativa, está a prática instrumental, cujas aulas são
ministradas nas escolas que servem como polos musicais e abrigam os
instrumentos que compõem a orquestra. "Embora a lei não determine a
prática instrumental, ela é necessária para que o aprendizado teórico se
verifique na prática", diz Souza.
O maestro ressalta que a aprendizagem teórica isolada não provoca o
desenvolvimento do raciocínio lógico e da sensibilidade atribuída ao
estudo da música.
"Sem a prática, o conhecimento do aluno fica privado
de tudo o que é desenvolvido em contato com a acústica, sonoridades e
interpretação das obras, além dele não receber a carga emocional que
norteia a música enquanto prática", observa Souza.
No entanto, tanto a lei quanto o projeto não visam a transformar os
estudantes em músicos à força, mas oferecer a oportunidade de
especialização àqueles que se interessarem pela prática, podendo
inclusive facilitar o ingresso em cursos de graduação na área por meio
de um convênio com a universidade local.
"A obrigatoriedade implementada
pela lei diz respeito aquele conteúdo que pode ser aproveitado por
qualquer aluno, pois a música é parte do cotidiano das pessoas. Não se
pode obrigar ninguém a tocar um instrumento, isso já é uma questão
vocacional", completa Souza.
O acompanhamento dos alunos participantes do projeto verificou de fato o
desenvolvimento do raciocínio lógico e da capacidade de concentração, o
que pode atuar como um grande ganho no aprendizado de outras
disciplinas.
Souza acrescenta que houve redução no índice de
reprovações, e diz que o sistema de prática instrumental, realizado no
turno contrário, também promove indiretamente um benefício social.
"O
aluno passa a ter praticamente educação em período integral. Depois do
horário de aula, ele volta para o colégio ou vai para algum dos polos
participar de ensaios. Como 87% do nosso atendimento é feito em escolas
da periferia, isso o afasta de problemas sociais que ele poderia ser
exposto", explica o maestro.
Fonte: Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário