Temos sorte que nosso conhecimento em medicina só tem aumentado. Na
antiguidade, as chances de morrer por condições médicas eram muito maiores, e vários dos procedimentos realizados eram monstruosos (por falta de uma palavra melhor para expressá-los).
Sem contar o fato de que, antes do Iluminismo, a ciência era frequentemente negligenciada em favor a práticas “menos confiáveis”, como rituais mágicos ou religiosos.
No entanto, arqueólogos descobriram recentemente uma cabeça humana
dissecada e bem preservada que remonta aos anos de 1200, o que mostra
que a Idade Média não era tão “anticiência” quanto alguns estudiosos nos
fazem crer.
A cabeça mumificada parece horrível, mas segundo os cientistas foi
com certeza um projeto de ciência medieval – uma dissecação que, graças
ao seu ótimo estado de preservação, foi provavelmente usada para
educação médica contínua.
A identidade do homem não é conhecida. Os pesquisadores sugerem que
ele poderia ter sido um prisioneiro, uma pessoa institucionalizada, ou
talvez um mendigo cujo corpo nunca foi reivindicado.
Conhecimento avançado para a época
Segundo os pesquisadores, quem preservou esta cabeça sabia o que
estava fazendo. As veias e artérias foram preenchidas com uma mistura de
cera de abelha, cal e cinábrio (sulfeto de mercúrio) – compostos que
preservam o corpo, dando também ao sistema circulatório alguma cor
(mercúrio tem uma tonalidade vermelha).
A preparação da amostra se mostrou surpreendentemente avançada. A
datação por radiocarbono coloca a idade do corpo entre 1200 e 1280, uma
época considerada pertencente à era anticientífica europeia da “Idade
das Trevas”.
Apesar disso, o novo espécime sugere conhecimentos de anatomia
inesperados para tal momento da história. “É incrível. Suponho que o
preparador não tenha feito isso apenas uma vez, mas várias vezes, para
ser tão bom nisso”, disse o pesquisador Philippe Charlier, médico e
cientista forense do Hospital Universitário R. Poincaré, na França.
O espécime, agora em uma coleção particular, consiste de uma cabeça
humana e ombros com a parte superior do crânio e do cérebro removido.
Mordidas pequenas de roedores e trilhas de larvas de insetos marcaram um
pouco seu rosto.
O achado deve entrar em exibição no Museu de História da Medicina, em Paris (França).
Idade das Trevas x Ciência
No segundo século, um romano etnicamente grego chamado Galeno
tornou-se médico dos gladiadores. Seus vislumbres do corpo humano
através das feridas desses guerreiros, combinadas com muitas dissecações
sistemáticas de animais, tornaram-se a base da medicina islâmica e
europeia durante séculos. A supremacia anatômica dos textos de Galeno só
foi desafiada no Renascimento, quando dissecações humanas – muitas
vezes em público – se tornaram populares.
Agora, com a nova descoberta, ficou provado que os médicos da Europa
medieval não eram tão ociosos quanto parece – de fato, eles são autores
da mais antiga conhecida dissecção preservada humana.
“Houve progresso científico considerável no final da Idade Média, em
particular a partir do século 13″, disse James Hannam, historiador e
autor do livro “The Genesis of Science: How the Christian Middle Ages
Launched the Scientific Revolution” (em português, “A Gênese da Ciência:
Como a Idade Média Cristã lançou a Revolução Científica”, 2011).
Hannam aponta que, durante séculos, os avanços da Idade Média foram
esquecidos. Segundo ele, nos séculos 16 e 17, tornou-se uma “moda
intelectual” para pensadores citar fontes antigas gregas e romanas, em
vez de cientistas da Idade Média.
Grande parte dessa memória seletiva resultou em sentimentos
anticatólicos, por conta da propaganda sobre como a Igreja Católica
estava prejudicando o progresso humano.
Hannam afirma que a partir deste sentimento anticatólico surgiu um
grande número de mitos, como a ideia de que todos acreditavam que o
mundo era plano até Cristóvão Colombo navegar para a América. “Eles não
pensavam nada do tipo”, disse.
Da mesma forma, os propagandistas do Renascimento espalharam o boato
de que a igreja cristã medieval proibia autópsias e dissecação humana,
segurando o progresso da medicina.
Na verdade, conta Hannam, muitas sociedades proibiram ou limitaram o
desmembramento de cadáveres humanos, desde os antigos gregos e romanos
até os europeus mais adiantados (é por isso que Galeno dissecava animais
e não os gladiadores). Mas autópsias e dissecação não estavam sob a
proibição da igreja na Idade Média. Inclusive, a igreja às vezes
ordenava autópsias, com a finalidade de procurar sinais de santidade no
corpo de uma pessoa.
O primeiro exemplo de uma dessas “autópsias santas” ocorreu em 1308,
quando freiras realizaram uma dissecação do corpo de Clara de
Montefalco, uma abadessa que seria canonizada como santa em 1881. As
freiras relataram a descoberta de um crucifixo minúsculo no coração da
abadessa, bem como três pedras em sua vesícula biliar, que elas viram
como símbolo da Santíssima Trindade.
Também, de acordo com Charlier, em 1286, um médico italiano realizou
autópsias a fim de identificar a origem de uma epidemia, o que sugere
que o procedimento não era vetado.
Porém, mesmo que mais investigações corporais ocorressem na Idade
Média do que anteriormente acreditávamos, os anos 1200 continuam a ser a
“Idade das Trevas”, no sentido de que pouco se sabe sobre dissecações
anatômicas durante este período de tempo. Tanto que, quando Charlier e
seus colegas começaram a examinar a nova amostra, eles suspeitaram que
seria de 1400 ou 1500 – e acabaram surpresos com sua antiguidade.
Fonte: Hypescience
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