terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Cem anos de um rei negro: pai de santo derrubou preconceitos e popularizou candomblé

Joãozinho da Gomeia é saudado: fama teria ajudado a mudar imagem da religião - Arquivo O GLOBO


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Baiano, Joãozinho da Gomeia fez fama no Rio.

Foi em 3 de abril de 1971 que a revista “Manchete” noticiou: “Quando seu corpo chegou à sepultura, no cemitério de Caxias, Estado do Rio, um raio cortou o espaço, e desabou toda a água dos céus, ensopando as três mil pessoas que erguiam os braços e gritavam: Saravá, Iansã!”. A narração caprichada descrevia o enterro de João Alves Torres Filho, o pai de santo Joãozinho da Gomeia, cujo centenário é comemorado este ano.

Apelidado à época pela imprensa de “rei negro”, “o maior babalorixá do Brasil” e até “Papa do candomblé”, ele morreu em 19 de março daquele ano vítima de um tumor no cérebro e problemas cardíacos. O relato sobre a cerimônia fúnebre pode conter excessos, mas não inverdades. É o que assegura Sílvia Mendonça, presente ao evento.  


- Não é fantasia, é fato - dispara, ao comentar a reportagem. - Era uma tarde muito quente de verão e, quando desceram o caixão, o tempo fechou. Começou uma chuva intensa, com trovoadas. Nasci e vivi na rua do cemitério onde ele foi enterrado, muito próximo ao seu terreiro. Todos comentam que, até hoje, aquela foi a maior cerimônia que o local recebeu. Eu tinha dez anos e acompanhei de longe, pela cerca de arame. A população da cidade toda estava ali, comerciantes afixaram cartazes avisando sobre o funeral.


O sepultamento grandioso condiz com a trajetória de Joãozinho da Gomeia. O pai de santo fez história no candomblé ao colocar a religião em páginas de jornais, revistas e também na agenda de celebridades e autoridades da época.


Getulio Vargas, Juscelino Kubitschek, Dorival Caymmi e Marlene figuram na lista dos que teriam conhecido o seu terreiro. Mulato, homem e abertamente homossexual, Joãozinho desafiava a tradição do candomblé, então dominado por lideranças femininas de ascendência africana comprovada.


- É impossível falar em candomblé do Brasil sem falar do Joãozinho. Na mídia, era a principal figura da religião. Não temos condição de saber o que seria o candomblé hoje se ele não tivesse existido - conta Andrea Mendes, doutoranda em História Social da África na Unicamp e autora do livro “Vestidos de Realeza: Fios e nós centro-africanos no candomblé de Joãozinho da Gomeia”. - Por mais que ainda persistam uma série de preconceitos, ele foi essencial para mostrar o candomblé não só como algo exótico, como um culto primitivo, mas sim como uma religião que tinha uma estrutura própria.



TERREIROS EM SALVADOR



Nascido em Inhambupe, cidade a cerca de 150 quilômetros de Salvador, Joãozinho foi iniciado no candomblé aos 16 anos pelo pai de santo Severiano Manoel de Abreu, conhecido como Jubiabá.


A trajetória de líder religioso começou em um terreiro na capital baiana, herdado de uma mulher a quem chamava de madrinha. Lá, ganhou seu primeiro apelido, João da Pedra Preta, por receber um caboclo com o mesmo nome.


A casa teria ficado pequena para a quantidade de pessoas que buscavam João, e ele se mudou para um terreiro no bairro de São Caetano, numa localidade chamada Gomeia, onde recebeu a alcunha pela qual acabou ficando conhecido. Em 1937, começou a ganhar projeção ao participar do II Congresso Afro-brasileiro, organizado pelo escritor Édison Carneiro.


- Ele era um pai de santo muito jovem, mulato, sem um ascendência africana clara numa época em que essa ascendência garantia respeito no meio. Além disso, era homossexual. Reunia tudo que não era desejado no meio conservador do candomblé naquela época. - afirma Andrea sobre este período. - Além de todos esses atributos, era da nação Angola, na época vista com um candomblé secundário.


Na década seguinte, no entanto, o babalorixá estabeleceu sua fama. Mudou-se para o Rio em 1946, provavelmente atraído por questões econômicas e por vínculos que tinha criado em viagens anteriores, segundo especialistas. Instalou então o seu terreiro em Duque de Caxias e virou celebridade na Baixada Fluminense.


- A casa dele era local oficial de vacinação. Minha mãe levava meus irmãos mais velhos lá. Nos ônibus que passavam por perto vinha escrito “Via terreiro de Pai João” - lembra Sílvia Mendonça, jornalista e atriz, idealizadora de homenagens a Joãozinho. - Na época, o candomblé era caso de polícia. Foi ele quem começou a mudar toda essa história.


A fama veio acompanhada de controvérsias. Em 1956 o pai de santo provocou a ira de líderes religiosos ao aparecer em jornais travestido de vedete em um baile no Teatro João Caetano.


Questionado por um repórter de “O Cruzeiro” se a fantasia não se chocava com os regulamentos do candomblé, lançou: “De nenhuma maneira, meu amigo. Primeiro, porque antes de brincar eu pedi licença ao meu guia. Segundo porque o fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os Orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio”.


O repórter ainda comentou “Você está falando difícil”. E ele: “Você está pensando que babalorixá tem de ser analfabeto?”. Dez anos mais tarde, nas páginas da mesma publicação, Joãozinho apareceria em uma fotorreportagem de capa que continha um conjunto de 26 fotografias apresentando vestimentas de divindades do candomblé.


- Nos candomblés considerados modelo, os homens não dançavam nas festas, não entravam em transe publicamente. Joãozinho entrava em transe, vestia roupas de orixás em cerimônias e incorporava Iansã, uma divindade feminina, o que era considerado um tabu.


Ele ainda tinha o agravante de alisar os cabelos. Usar ferro quente na cabeça - considerada a morada do orixá, o centro energético da pessoa - era impensável. Mas o que estava embutido nisso tudo era preconceito, para além dos dogmas afro-religiosos - argumenta Andrea.


As histórias do pai de santo foram relembradas no início do mês na mostra “Memória e identidade: 100 anos de Joãozinho da Gomeia”. O evento organizado pela Fundação Palmares em parceria com o Centro de Referência Patrimonial e Histórico (CRPH) de Duque de Caxias e com o apoio de Sílvia.


- Trouxemos pessoas de outros estados para falar dele, gente de Salvador, de Belo Horizonte - conta Neia Daniel, representante Fundação Palmares no Rio, citando ainda a presença da herdeira espiritual do babalorixá, Sandra dos Santos.


- Joãozinho é colocado por muitos como o rei do candomblé. Naquele cenário das décadas de 40, 50, 60, dentro de todo o preconceito que existia, ele assumia sua orientação sexual e, ao mesmo tempo, conseguiu dar uma visão à religião. Seu papel na época é comparado somente ao de mãe Menininha do Gantois.



BORI NO GANTOIS



A famosa ialorixá baiana era uma das religiosas mais próximas de Joãozinho, cujas irreverências não eram bem aceitas por algumas mães de santo. Segundo Andrea, existem muitas versões sobre a relação com Mãe Menininha.


Eles estiveram brigados por um tempo, mas em 1966 Joãozinho foi convidado por ela para acompanhar uma festa de caboclos no Gantois e lá fez um bori, uma cerimônia para fortalecer a cabeça, explica.


As celebrações em torno do pai de santo devem se estender ao ano que vem. A Prefeitura de Duque de Caxias planeja erguer um centro cultural no local onde existia o terreiro de Joãzinho.


Segundo Jesus Chediak, secretário de Cultura e Turismo, a ideia é que o local funcione como um espaço de resgate da memória do babalorixá e da cultura afro-brasileira, com auditório e quiosques de venda de artesanatos e comidas típicas. Hoje o local que vivia tomado de gente e recebia figurões é um terreno baldio.




Fonte: O Globo

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