O Centro Arqueológico de San Diego é dono de um par extraordinário de esqueletos. Com cerca de 9.500 anos de idade, eles estão entre os restos mortais humanos mais antigos já encontrados nas Américas.
Inúmeros cientistas adorariam estudar esses ossos, utilizando técnicas
novas e poderosas para extrair qualquer DNA que possa ter sobrevivido em
seu interior.
"Esqueletos antigos assim são muito importantes
para nos ajudar a compreender o que aconteceu no passado da América do
Norte", afirmou Brian Kemp, antropólogo molecular da Universidade do
Estado de Washington.
Mas há muitos anos os ossos estão longe do
alcance dos especialistas, uma vez que estão sujeitos a uma batalha
legal travada por três cientistas da Universidade da Califórnia contra a
própria instituição e os Kumeyaay, um grupo de tribos de nativos
americanos.
Os esqueletos foram encontrados na comunidade La
Jolla, em San Diego, em 1976, por uma equipe de arqueólogos que escavava
em terras que pertencem à Universidade da Califórnia. Em 2006, um grupo
de tribos afirmou ser proprietário dos esqueletos, e a universidade
acabou por aceitar a transferência dos ossos. Para impedir a
transferência, os cientistas entraram na justiça.
Depois de
perderem nas primeiras instâncias, os pesquisadores envolveram em
novembro a Suprema Corte dos EUA. Na semana passada, a corte não aceitou
o caso, acabando com o último obstáculo à transferência.
Esqueletos descobertos em 1976 na comunidade de La Jolla, em San Diego (EUA)
"Não
tenho palavras para descrever como estou me sentindo mal com isso tudo",
afirmou Robert L. Bettinger, um dos autores do caso e professor na
Universidade da Califórnia, em Davis. "Deixar que esses ossos escapem
das nossas mãos representa uma perda enorme para a ciência".
Steven Banegas, porta-voz do Comitê de Repatriação Cultural dos
Kumeyaay, que declarou propriedade sobre os esqueletos, afirmou que as
tribos iriam se reunir para decidir o que fazer com os restos mortais.
Ele não negou que os cientistas possam estudá-los. "Essas coisas ainda
precisam ser discutidas. Queremos ser os responsáveis por contar nossa
própria história".
Na época em que os esqueletos foram
encontrados, os arqueólogos tinham relativa liberdade para fazer o que
quisessem com os restos mortais de nativos americanos que encontrassem
nas escavações. Isso mudou com a aprovação da Lei de Proteção aos
Túmulos de Nativos Americanos e de Repatriação de 1990. A lei foi uma
reação a episódios terríveis na história da pesquisa dos Nativos
Americanos. Ladrões de túmulos roubaram esqueletos e objetos sagrados,
alguns dos quais foram guardados por diversos museus.
A lei estabeleceu um procedimento legal por meio do qual os nativos americanos podem dizer que são proprietários de objetos culturais e restos mortais humanos guardados em museus ou que sejam encontrados em terrenos públicos. Mais de 1,4 milhão de artefatos e ossos pertencentes a 50 mil povos foram transferidos de acordo com a lei, mas alguns casos geraram conflito.
Em 1996, por exemplo, montanhistas encontraram um
esqueleto de 8.500 anos em Kennewick, Washington. Tribos de nativos
americanos afirmaram ser proprietárias do esqueleto e tinham a intenção
de enterrá-lo novamente. Contudo, os pesquisadores questionaram o pedido
e, depois de oito anos de batalhas legais, obtiveram o direito de
estudá-lo. Mais recentemente, os cientistas conseguiram recuperar o DNA
dos ossos do Homem de Kennewick para reconstruir seu genoma completo.
No ano passado, divulgaram que ele tinha um parentesco próximo com
grupos atuais de nativos americanos. A descoberta serviu para jogar por
terra a hipótese anterior, de que o Homem de Kennewick seria parente de
polinésios ou mesmo de europeus.
Esqueletos antigos como o do
Homem de Kennewick e os ossos de La Jolla ajudam a dar pistas sobre como
os seres humanos se espalharam pelas Américas. Os pesquisadores
geralmente concordam que as pessoas vieram pela Ásia ou pelo Estreito de
Bering cerca de 15 mil anos atrás.
Como eles se espalharam pelo
continente ainda é motivo de debates intensos. Teriam ido para o centro
da América do Norte? Ou teriam feito sua rota ao longo do litoral? Os
esqueletos de La Jolla, retirados de uma encosta às margens do Pacífico,
podem ajudar a esclarecer essa dúvida.
O Comitê de Repatriação
Cultural dos Kumeyaay, que representa 12 tribos de nativos americanos no
Sul da Califórnia, afirmou ser a legítima proprietária dos esqueletos
de La Jolla em 2006.
Para determinar a conexão entre os restos
mortais e o povo, o comitê pediu para que Arion Mayes, antropóloga da
Universidade Estadual de San Diego que já havia trabalhado anteriormente
com esqueletos Kumeyaay, realizasse o exame, desde que ela não
destruísse o material. "Foi uma grande honra", afirmou Arion.
Ela encontrou pistas sobre o estilo de vida das duas pessoas. Um dos
esqueletos pertencia a um homem que morreu pouco antes dos 30 anos de
idade. Ele tinha um braço direito forte, que foi desenvolvido pelo
lançamento de lanças. O outro pertencia a uma mulher com cerca de 40
anos de idade, cujos dentes exibiam marcas típicas de quem os utiliza
para separar fibras para a fabricação de cestas.
"Ela utilizava os dentes como ferramenta", afirmou Arion.
A Universidade da Califórnia, por sua vez, destacou um comitê de
professores para avaliar o pedido feito pela tribo. Em 2008, eles
concluíram que os esqueletos faziam parte de uma "cultura não
identificável". Não havia objetos no túmulo que pudesse estabelecer uma
conexão cultural e o comitê não encontrou indícios convincentes de que
eles poderiam pertencer a parentes distantes dos Kumeyaay.
Ainda
assim, Bettinger, que era membro do comitê, afirmou em uma entrevista
que ficou preocupado com a possibilidade de a Universidade realizar a
transferência dos esqueletos de forma apressada e que os Kumeyaay
impedissem o acesso aos ossos.
Por isso, em 2010, pediu à
universidade permissão para estudar os restos mortais. Margaret J.
Schoeninger, antropóloga da Universidade da Califórnia, em San Diego, e
Tim D. White da Universidade da Califórnia, em Berkeley fizeram o mesmo.
Margaret recebeu uma resposta negativa, ao passo que Bettinger e White
nunca receberam uma resposta oficial.
Ao invés disso, a
Universidade da Califórnia anunciou em 2011 que os esqueletos seriam
transferidos para a tribo de La Posta, uma das tribos Kumeyaay.
Bettinger, Margaret e White abriram o processo para interromper a
transferência, argumentando que a universidade não tinha indícios
adequados para realizá-la.
Kemp, da Universidade do Estado de
Washington, que escreveu uma carta em favor dos cientistas, afirmou que a
universidade não tinha respeitado as exigências da lei de repatriação.
"A lei não foi seguida", afirmou.
Contudo, os argumentos da
corte não abordaram diretamente as ações da universidade, nem a
relevância científica dos esqueletos. A Universidade da Califórnia
argumentou que as tribos Kumeyaay tinham que participar do processo.
Contudo, como as tribos têm imunidade tribal, os cientistas não poderiam
processá-las, de acordo com a universidade.
Um tribunal
distrital concordou e encerrou o processo. Em 2014, a Corte de Apelações
dos EUA também deu veredito negativo aos cientistas.
Em
novembro, os cientistas pediram à Suprema Corte para que o caso voltasse
à Corte de Apelações, com objetivo de reconsiderar se a imunidade
tribal poderia ser invocada durante processos oriundos da lei de
repatriação. A corte rejeitou o pedido sem dar explicações.
"Isso é uma verdadeira tragédia e uma desgraça -- uma tragédia para a
ciência e uma desgraça para o Direito", afirmou James McManis, advogado
autor do caso.
McManis afirmou que a decisão poderia deixar os
pesquisadores em desvantagem, já que as tribos poderão pedir imunidade
em qualquer disputa do gênero.
A negação da Suprema Corte marca o
fim da linha para os cientistas. O objetivo agora, afirmou Dorothy
Alther, advogada dos Kumeyaay, é "contatar a universidade e ver quais
são os próximos passos para a repatriação".
Kate Moser,
porta-voz da Universidade da Califórnia, afirmou por e-mail que
"acreditamos que o processo da universidade chegou a uma decisão que
está de acordo com a lei e com nosso compromisso de lidar
respeitosamente com os restos mortais humanos e os objetos culturais
associados a eles".
Arion afirmou esperar que os cientistas e os
nativos americanos encontrem formas mais construtivas de resolver esses
conflitos. "Quando acabamos nos tribunais, as coisas se tornam voláteis
e fica difícil conversar. Apenas com respeito mútuo poderemos ter uma
situação mais positiva no futuro."
Embora algumas tribos sejam
contrárias ao estudo de DNA antigo, outras decidiram permiti-lo. Banegas
não nega a possibilidade de que o mesmo aconteça com os esqueletos de
La Jolla assim que eles voltarem para as mãos dos Kumeyaay. E afirmou:
"Não é impossível. Não gostaria que pensassem que estamos fechados a
isso".
Fonte: UOL
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