Noiva cadáver espera pelo sim (Foto: Marcos Luan)
O segredo de um coração (Foto: Marcos Luan)
Chica mal acabada (Foto: Marcos Luan/Encenação Teatral)
Da janela da cozinha, Ermínia lembra das aparições da Luz (Foto: Douglas Caputo)
As ruínas que abrigam o choro assombroso (Foto: Douglas Caputo)
Casa em que Nhanhá Gabet viveu seus últimos anos (Foto: Douglas Caputo)
Aceite meu presente (Foto: Douglas Caputo)
Entrada para gruta assombrada (imagem da internet)
Lendas e histórias de fantasmas povoam a imaginação de pessoas que moram em pequenas cidades de Minas Gerais. Esses casos vêm de uma época em que nem existia luz elétrica. Mas, até hoje, eles metem medo em muita gente.
O que não falta ao interior de Minas Gerais são histórias de assombração e lendas que atravessaram gerações. Por aqui, as crianças já nascem envolvidas com esses casos. Os pais acreditam que devem enterrar o cordão umbilical dos filhos para que ratos não o comam. Caso contrário, a pessoa pode virar ladrão quando grande.
Também vêm de pequenas cidades mineiras e de suas fazendas coloniais mitos de fantasmas que enchem a imaginação das pessoas. Não é difícil encontrar um morador que não tenha presenciado ou ouvido falar de barulhos de correntes, choro de escravos ou de passos de pessoas madrugada afora.
Essas histórias são tão famosas no interior mineiro que em São João del-Rei foi criado, em 2007, o grupo “Lendas São Joanenses”, com o objetivo de preservar relatos que contam um pouco da história local.
Pelo menos uma vez por mês, o grupo leva visitantes para conhecer locais com passagens de arrepiar. São 12 encenações no total, mas segundo o organizador do grupo, o guia Jadir Janio, três delas se destacam no itinerário das apresentações noturnas pelas ruas históricas da cidade.
Um desses mitos é o que dá nome ao bairro Segredo. Janio comenta que o episódio vem da época da escravidão, quando uma sinhá resolveu se vingar do marido e de sua amante, uma escrava da família. “Ao descobrir a traição, a senhora matou a adúltera e cozinhou seu coração para que o esposo comesse. O fato foi escondido do marido e o segredo acabou nomeando a região onde o episódio teria acontecido”, explica.
Outra lenda que chama atenção dos turistas em São João del-Rei é a da “Chica mal-acabada”. Janio diz que se trata de uma mulher que ia à igreja e colocava um espelho na bíblia para paquerar um rapaz que se sentava atrás dela. “Como isso é pecado, ela passou a ver, no lugar da imagem de seu pretendido, a figura do diabo. Para não ter visões de Satanás, ‘Chica’ arrancou os próprios olhos”.
A passagem do “Retrato” também faz sucesso entre as pessoas. Uma senhora abordou um padre, que acabava de chegar a São João del-Rei, e pediu que ele fosse até a sua casa para confessar o filho à beira da morte. Quando chegou ao local, o religioso viu uma foto da mulher que havia pedido o sacramento. Perguntou para os moradores da casa onde ela estava e foi informado que ela havia morrido fazia três anos.
Janio explica que essas histórias surgiram num cenário que estimulava a criação de narrativas fantásticas. Isso porque, “na escuridão da época, sem luz elétrica, o ambiente ajudava a causar o medo que alimentava a imaginação das pessoas”.
Na opinião do guia, “as lendas eram um instrumento de pressão e controle, já que, em sua maioria, envolviam a igreja”. O grupo “Lendas São Joanenses” foi inspirado pelo livro “Contam que”, escrito na primeira metade do século 20 pelo jornalista local Lincon de Souza.
Luz do Mundo
Também não são raras as histórias de pessoas que já tiveram algum contato com objetos voadores que emitem luzes. Apesar do nome variar nas Vertentes, em São Tiago, o fenômeno é popularmente conhecido como “Luz do Mundo”.
Luz do Mundo
Também não são raras as histórias de pessoas que já tiveram algum contato com objetos voadores que emitem luzes. Apesar do nome variar nas Vertentes, em São Tiago, o fenômeno é popularmente conhecido como “Luz do Mundo”.
A história é levada tão a sério, que tem até livro que trata sobre o assunto. Em 2008, a pedagoga aposentada, Ermínia Caputo, reuniu narrativas que ouviu e vivenciou ao longo dos anos. Na obra intitulada “Acaso são estes os Sítios Formosos?”, a escritora descreve cenas de aparição da Luz do Mundo.
Não existem estudos científicos sobre o fenômeno, mas no imaginário popular, a explicação vem de fatos religiosos. A narrativa oral informa que a Luz do Mundo teve origem numa maldição.
Uma jovem teria sido enterrada com uma fita que simboliza a irmandade católica das Filhas de Maria, o que é proibido. Por conta disso, a alma da moça se transformou em uma luz que vaga pelo mundo. Seu descanso só virá se alguém corajoso lhe retirar a fita. E gente disposta a fazer isso tem aos bocados em São Tiago.
Em seu livro, Ermínia relata o episódio de um senhor que desafiou o medo e tentou apanhar a fita do espírito.
“No local denominado Vargem (próximo ao centro da cidade), a Luz aprecia muito, beirando o esbarrancado que há por lá. Um senhor muito simples, que vivia a puxar esterco para vender, dizia não ter medo da Luz e se propôs tirar-lhe a fita de Filha de Maria. Um dia ela apareceu e, corajoso, ele foi se aproximando dela. À medida que se aproximava, ela ia se afastando, até que ele caiu no esbarrancado”. Ermínia diz que o homem não se machucou, mas também não conseguiu pegar o que queria.
Outra história de gente que enfrentou a tal Luz aconteceu numa noite de pescaria. O aposentado José Batista Santana, que garante já ter visto o fenômeno várias vezes, conta o medo que passou com um amigo.
“A gente saiu para pescar num lugar conhecido como Ribeirão da Fábrica (a oito quilômetros do centro de São Tiago). No meio do caminho, encontramos um conhecido, que disse que a gente ia encontra a Luz. Meu companheiro zombou do moço e falou que se encontrasse a Luz, ia puxar o pé dela. Quando a gente estava perto do Ribeirão, avistamos de longe uma brasa de fogo. Ficamos um pouco receosos, sem saber o que era aquela luz, mas continuamos. A luz foi ficando mais forte e clareou as águas do rio. Ficamos com tanto medo que resolvemos voltar para a cidade”, admite.
Mas o que a dupla de pescadores não esperava é que a Luz fosse acompanhá-los até bem perto da cidade. “Quando a gente chegou numa porteira, lá estava ela. Sem saber o que fazer, tiramos o chapéu em respeito e passamos no meio do clarão. Depois disso ela voltou pro mato e sumiu dentro de um esbarrancado”. Após esse episódio, o aposentado, ressabiado, afirma que “não se deve abusar com essas coisas”.
Ermínia, a escritora, também garante já ter visto a Luz várias vezes da janela de casa, principalmente no entardecer. “Ora ela andava, ora ela aumentava de tamanho, ora ela abaixava o facho. Tinha cor amarelada. Eu nunca ouvi chiar, mas tem muita gente que diz ter ouvido barulho vindo da Luz”.
Ermínia não acredita na lenda da assombração com fita no pescoço e assegura que não sente medo. Mas, para ela, o fenômeno pode ter explicação científica. “É alguma coisa natural. Pode ser um fogo-fátuo, um balãozinho. Eu acredito nisso, mesmo com tantas histórias de pessoas mais velhas e até da minha idade acreditarem no mito da Luz”, afirma.
Não se sabe ao certo de onde vem a lenda da Luz do Mundo. Hoje, poucas pessoas relatam sua aparição, apesar de quase todo mundo de São Tiago conhecer suas histórias.
Ermínia diz que isso é um fato importante, porque se trata do registro da história de um povo. “Esses casos vêm da oralidade, do passar de um para outro. Eles tinham a função de alentar nas noites escuras. É um patrimônio imaterial. Assim como a gente tem livros, roupas, álbuns dos antepassados, também temos que preservar esse tipo de patrimônio”, defende.
Lágrimas de morte
Dizem que em noites escuras, na região da Pavuna, a dois quilômetros do centro de São Tiago, o choro do espírito de uma mãe atordoa quem passa pelo local. Entre as ruínas de uma casa do início do século passado, a alma de Maria José Gabet, a Nhanhá Gabet, veste preto e vaga com gemidos e lágrimas pela morte dos sete filhos mais o marido, fato ocorrido dia 13 de setembro de 1916.
O espanto em torno do caso é por conta das circunstâncias das mortes. O pai da família, José Gabet, obrigou todos a tomar vermífugo. O remédio, na realidade, era estricnina, um veneno potente. Um a um, os filhos e o casal foram tombando em agonia. No entanto, Nhanhá Gabet sobreviveu garças à ajuda dos vizinhos. De 1916 a 1960, ano de sua morte, a matriarca nunca deixou de vestir roupas pretas, luto eterno que guardou em respeito à família.
Mas, o que teria motivado o pai a matar os filhos e a cometer suicídio? Segundo as histórias contadas ao longo dos anos, José Gabet era um boiadeiro que sempre viajava em comitivas de gado para o oeste de Minas Gerais. Numa dessas idas, engravidou uma filha de coronel.
“Isso aconteceu na ocasião em que o peão contraiu febre amarela e teve que ficar por mais tempo que o esperado numa fazenda que servia de pousada. Por lá, conheceu uma jovem com a qual teve um caso, e acabou tirando sua honra. O pai da moça, um homem muito rígido, prometeu vingança. Seu objetivo era matar José Gabet e sua família em São Tiago”, conta Ana Paula Lara, professora de história que fez monografia sobre o assunto.
Conforme Ana Paula, a moça grávida teve pena do que poderia acontecer com boiadeiro. Mandou um mensageiro avisar José Gabet sobre risco que estava correndo.
“Sem saber o que fazer e num ato desesperado, o peão foi a São João del-Rei e comprou veneno numa botica para matar toda a família. Depois de beber com o marido e dar o tal vermífugo para os filhos, Nhanhá Gabet percebeu que as crianças estavam agonizando. Ela começou a gritar e os vizinhos foram acudir. Ao verem a cena, os moradores do local deram leite para a mulher que vomitou o veneno”, conta Ana Paula.
A comoção social em torno do caso gerou lendas sobre a família. O comerciante João Batista de Andrade, o Batista, tem uma venda próxima ao local das mortes. E ele próprio garante já ter visto coisas estranhas . Em 1973, quando sua esposa entrou em trabalho de parto, teve que ir buscar uma parteira numa rua próxima de sua casa. No meio do caminho, ao avistar a Pavuna, viu uma luz estranha no local.
“Saí de casa por volta das duas da madrugada e por acaso olhei para o caminho que levava à Pavuna. Vi uma luz na casa de Nhanhá Gabet. Ela ia e voltava, parecendo procurar algo ou alguém. Isso me fez arrepiar e, ao me lembrar das mortes, fiquei mais apavorado ainda”, lembra.
Em sua venda, típica do interior de Minas Gerais, Batista ouve contar muitas dessas histórias. A que chamou mais a atenção do comerciante foi a do enterro fantasma dos Gabet. Batista se lembra do relato de um homem que teria tido uma visão de assombrar.
Em sua venda, típica do interior de Minas Gerais, Batista ouve contar muitas dessas histórias. A que chamou mais a atenção do comerciante foi a do enterro fantasma dos Gabet. Batista se lembra do relato de um homem que teria tido uma visão de assombrar.
“Seu Geraldo Campos contava que depois de jogar baralho por um longo tempo com um amigo, na cidade, precisava voltar para sua casa, na roça. O caminho era pela Pavuna e, como de costume, seguiu tranquilo em seu cavalo. Ao passar pela ‘cava’ que se estendia até à casa dos Gabet, viu um funeral, com oito pessoas carregando um caixão. Achou aquilo estranho, principalmente porque era tarde da noite. Parou o cavalo, tirou o chapéu, fez uma oração e depois seguiu caminho. No dia seguinte voltou à cidade e, ao questionar algumas pessoas, inclusive o coveiro, descobriu que ninguém havia sido enterrado aquela noite”, diz Batista.
A história marcou o então distrito de São Tiago. O enterro com oito caixões ao mesmo tempo era inédito na localidade. No registro de óbito da família, consta que o filho mais velho tinha doze anos e o mais novo apenas três meses de idade.
“O que espanta é que os jagunços do tal coronel chegaram à cidade no dia em que os corpos estavam sendo velados e que não seriam de um lugar tão distante, mas da região de Campo Belo”, diz Ana Paula.
Caça ao tesouro fantasma
Na região rural de São Tiago conhecida como Gamelas, quem espanta os visitantes é o espírito de um padre doido por metais preciosos. Segundo a historiadora e professora Elena Campos, por volta de 1708, época do Brasil colônia, o religioso José Manuel era dono de escravos e extraía ouro de sua propriedade.
Caça ao tesouro fantasma
Na região rural de São Tiago conhecida como Gamelas, quem espanta os visitantes é o espírito de um padre doido por metais preciosos. Segundo a historiadora e professora Elena Campos, por volta de 1708, época do Brasil colônia, o religioso José Manuel era dono de escravos e extraía ouro de sua propriedade.
“O que se conta é que para presentear o rei de Portugal, o clérigo mandou fundir parte do ouro em forma de um cacho de banana. Porém, o rei, sabendo disso antes de receber o tal presente, considerou a atitude de José Manoel uma ofensa ou até mesmo um risco à Coroa, e mandou prender o padre e confiscar seus bens. Mas, antes de ser preso, o clérigo escondeu o ouro em alguma parte de suas terras, para evitar que outras pessoas sofressem como ele”, conta.
A história se espalhou e o que não faltou foi gente atrás do tesouro. O escritor Ademir Mendes é uma dessas pessoas. No livro que publicou em 2011, ele conta o mistério do ouro das Gamelas. Junto de alguns amigos, aventurou-se dentro da gruta com o objetivo de ficar rico.
A história se espalhou e o que não faltou foi gente atrás do tesouro. O escritor Ademir Mendes é uma dessas pessoas. No livro que publicou em 2011, ele conta o mistério do ouro das Gamelas. Junto de alguns amigos, aventurou-se dentro da gruta com o objetivo de ficar rico.
“Entramos, um a um, muito receosos e prevenidos para alguma emergência. A passagem era muito estreita, permitia a entrada de uma pessoa de cada vez. Dentro do buraco, o espaço era maior e nós conseguimos ficar de pé e andar normalmente. A luz do dia foi ficando escassa e impediu que nós continuássemos nossa jornada. Não aventuramos ir muito longe no escuro, pois falam da existência de uma fenda muito profunda, sem fim, dentro da gruta”. O grupo de rapazes desistiu de encontrar o ouro e voltou para cidade sem se tornar milionário.
O técnico de som, Rosauro Caputo, também se aventurou atrás do tesouro. Ele ainda se lembra da aventura que passou quando tinha 20 anos de idade. Junto de uma turma, Rosauro decidiu procurar o cacho de banana dourado.
“Conseguimos entrar apenas uns três metros dentro da gruta, pois a gente não tinha luz e havia muitos animais. Se foi coisa do padre ou não, tivemos que sair correndo, pois fomos atacados por um enxame de maribondos”, conta.Coincidência ou não, a equipe desta reportagem também foi atacada por maribondos quando fazia fotografias noturnas na Pavuna.
Segundo Elena, a historiadora, esse caso tem seu fundo de verdade, já que, de acordo com registros, as terras eram mesmo desse padre. Mas, a historiadora ressalta que é preciso cuidado, pois não existem indícios de garimpo na fazenda das Gamelas.
“Apesar de a lenda afirmar que as terras eram ricas em ouro, alguns historiadores não acreditam nessa hipótese, já que não há indícios de que houve grande movimentação de mineração na região. O fato é que a história surgiu não se sabe ao certo o porquê, mas até hoje meche com o imaginário das pessoas”, afirma.
Bens imateriais
Além de cuidar de seus bens materiais, como o casario antigo e as igrejas, cidades como São João del-Rei e São Tiago têm se preocupado em preservar o chamado patrimônio imaterial, que inclui lendas, músicas e receitas culinárias.
Bens imateriais
Além de cuidar de seus bens materiais, como o casario antigo e as igrejas, cidades como São João del-Rei e São Tiago têm se preocupado em preservar o chamado patrimônio imaterial, que inclui lendas, músicas e receitas culinárias.
Em entrevista por e-mail, o historiador e técnico em assuntos culturais do Museu Villa-Lobos no Rio de Janeiro, Pedro Henrique Belchior, diz que as políticas de patrimônio sofreram mudanças importantes na década de 1980, com a criação da Fundação Pró-Memória, liderada pelo pernambucano Aloisio Magalhães.
Segundo Belchior, os bens intangíveis passaram a figurar como acervo fundamental da história da sociedade. “A importância desses bens, na interpretação dos intelectuais fundadores do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, consistia no fato de que seriam testemunhas incontestáveis da formação da identidade e da cultura nacional”, comenta.
A valorização de elementos vindos da cultura oral, segundo o técnico do museu, também modificou os interesses das abordagens históricas. Os grandes personagens da história cedem lugar para pessoas e fatos do cotidiano.
“A perspectiva inaugurada por Aloisio Magalhães privilegia o conceito de ‘referência cultural’. O foco não mais recai sobre grandes feitos e personalidades históricas, mas sobre a importância de certas memórias, lugares e fazeres na vida das comunidades. Assim, narrativas, saberes e fazeres locais passam a ser tão valorizados quanto os tais bens patrimoniais representativos da cultura brasileira”, explica Belchior.
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