À primeira vista, os rabiscos parecem traços sem importância, como estes das cavernas espanholas conhecidas como Las Chimeneas
Genevieve von Petzinger passa dias inteiros em grutas de difícil acesso,
estudando o que seria um misterioso código da Idade da Pedra
À primeira vista, os rabiscos parecem traços sem importância, como estes
das cavernas espanholas conhecidas como Las Chimeneas, que são
Patrimônio da Humanidade. Em El Castillo, na Espanha, as linhas
vermelhas que se repetem em outras cavernas europeias
Acompanhada do marido fotógrafo, Genevieve von Petzinger explora a caverna de Cudon, na região espanhola da Cantábria
A pesquisadora fez uma lista com 32
símbolos que se repetem em diferentes sítios arqueológicos - ainda falta
decifrar seu significado
Na parede da gruta El Castillo, na Espanha, o contorno de uma mão feito com tinta vermelha
A pesquisadora acredita que os traços poderiam representar elementos da natureza
As linhas em zigue-zague são "democráticas": fáceis de desenhar e
melhores como ferramentas de comunicação, segundo a pesquisadora
Desenhos que podem ser facilmente reconhecidos, como este cervo, têm
atração imediata sobre os pesquisadores afirma Von Petzinger
Genevieve von Petzinger faz medições em uma gruta com desenhos "aparentemente geométricos"
Um "retângulo com divisões" aparece nas paredes da caverna espanhola El Castillo
Pesquisadora diz que é preciso parar de olhar esses desenhos como simples figuras geométricas
São 32 traços que se repetem em diferentes cavernas de toda a Europa. Registros simples: apenas linhas em zigue-zague, pontos, triângulos inacabados, cruzes retorcidas ou algo que lembra figuras geométricas.
Nenhum deles é criação de alguém apressado ou de um
mau desenhista: os cientistas acreditam que esse conjunto forma o
código de escrita mais antigo de que se tem registro.
Entender
os traços está tirando o sono de Genevieve von Petzinger,
paleoantropóloga da Universidade de Victoria, no Canadá, responsável por
um estudo inédito sobre arte rupestre do período Paleolítico.
O
período, também conhecido como Idade da Pedra Lascada, vai de 2 milhões
a.C. (época aproximada em que o homem fabricou o primeiro utensílio)
até 10.000 a.C..
'Desenhos ignorados'
"Me interessam os grandes padrões, as possíveis interconexões entre
desenhos e regiões", disse a cientista à BBC Mundo, o serviço em
espanhol da BBC.
O alcance geográfico do projeto é certamente
ambicioso: envolve mais de 350 sítios arqueológicos, "o que não é muito
se levarmos em conta que são 30 mil anos de história".
Além disso, envolve olhar o que antes muitos outros cientistas passaram por cima.
A paleoantropóloga canadense não está interessada nas figuras mais
atraentes - os bisões, as cenas de caça, as representações de formas
claramente humanas - e sim nos registros que foram classificados como
"geométricos" por falta de um termo mais apropriado.
"São os desenhos negligenciados, ignorados", ri.
Viagem subterrânea
Esses "desenhos ignorados", que estão ali desde a Idade da Pedra, são
parte de um dos legados artísticos mais antigos do mundo, da fase final
do último período glacial na Europa (por isso também chamada de arte da
Era do Gelo).
Silenciosos e inexplorados, esses traços podem
falar de "uma mudança fundamental nas habilidades dos nossos
ancestrais", diz a cientista. Isso porque a capacidade de articular um
código é a mesma exigida para desenvolver uma escrita, como fez o homem
moderno.
Em muitos casos, a existência desses símbolos não é nenhuma novidade.
"Mas os inventários (feitos pelos paleontólogos quando vão estudar uma
nova caverna) nem sequer dizem que tipo de sinais eles são, os
consideram secundários e não fazem comparações."
Foi assim que, há três anos, a cientista embarcou numa viagem subterrânea, acompanhada do marido fotógrafo.
Eles passam a maior parte do dia em grutas ou cavernas, até "emergirem" à noite, como ela mesma diz.
Trata-se de um total de 52 cavernas, em muitos casos de acesso
dificílimo por causa de condições geográficas ou porque estão nas mãos
da iniciativa privada.
Descoberta de uma nova arte
É o caso das cavernas de El Portillo, Santián ou Las Chimeneas, na
Espanha, e Niaux e Marsoulas, na França, além de outras na Itália e em
Portugal.
A maior parte delas não tem a popularidade das grutas
mais "midiáticas" como Chauvet, no sul da França, ou Altamira, na
Espanha.
"Em muitas grutas, inclusive, encontramos uma nova arte, que não tinha sido descoberta", diz Von Petzinger.
"Ninguém se preocupou em registrar estes traços. Quando começamos a fazê-lo, vimos que eles se repetem. Há um padrão."
O casal catalogou meticulosamente os sinais até chegar a uma espécie de
repertório, que se repete nas pedras de diferentes grutas: um total de
32 símbolos.
"É realmente interessante verificar que eles são
tão específicos, que cada um é muito diferente do outro. Inclusive os
mais incomuns se repetem (em outras grutas) de maneira idêntica. As
possibilidades de que isso seja uma coincidência são bem pequenas",
afirma a pesquisadora.
Em outras palavras, o que isso significa é que estaríamos diante de
um código pré-estabelecido e compartilhado por diferentes grupos do
período Paleolítico.
Também sugere, diz ela, que havia conexões entre lugares remotos naquela era pré-histórica.
"Sabemos que na Europa havia uma ativa rede de intercâmbio de
populações e isso nos dá um sinal de como era sofisticada a sua
estrutura social", diz a cientista, que em maio deste ano publicou um
livro com suas descobertas (The First Signs: Unlocking the mysteries of
the world's oldest symbols, algo como "Os primeiros sinais: desvendando
os mistérios dos símbolos mais antigos do mundo",ainda não lançado em
português).
Um código, mas qual o significado?
Como qualquer cientista curioso, Von Petzinger adoraria poder ler para além dos traços e descobrir seus significados.
Por exemplo, poder estabelecer com certeza que uma figura em forma de
chave é uma lança e que registros em forma de pena são folhas de árvore.
Mas a pesquisadora admite que essa é uma missão impossível.
"Por mais que desejemos, nunca vamos poder estar na cabeça de pessoas que viveram há 30 mil anos", diz, rindo.
"Mas se não sabemos o que significam, sabemos que esses traços deveriam
ter um sentido. E isso nos é indicado pela sua repetição."
O que importa, insiste Von Petzinger, é o padrão.
"Não se trata de um código como o egípcio, nem como a escrita
cuneiforme (que é a mais antiga língua humana escrita). Não é algo tão
organizado. Nesse sentido, nunca vamos poder decifrá-lo, nem temos
material de referência para isso."
O primeiro sistema de escrita
conhecido, o cuneiforme, tem cinco mil anos e surgiu onde atualmente é o
Iraque. Mas, a exemplo dos complexos hieróglifos egípcios, não faz
sentido que tenha aparecido do nada.
Primeiro código humano?
Os traços ordenados por Von Petzinger podem ser um sistema ainda mais
antigo de escrita: um "primeiro código humano" inscrito nas rochas das
grutas.
O que é inovador nesta descoberta, confirmam os
especialistas, é que ela revela as habilidades básicas necessárias para a
criação de um sistema de escrita: capacidade de abstração, registro de
marcas gráficas e sofisticado uso de símbolos.
"De maneira
geral, podemos dizer que os sistemas gráficos desenvolvidos na Europa,
na Idade do Gelo, são predecessores dos sistemas de escrita que vêm
depois. Não porque determinado símbolo daquela época esteja relacionado
com outro símbolo em uma etapa posterior, mas no sentido de que todos
são códigos."
Emojis pré-históricos
A pesquisadora os compara aos emojis, os ícones da era dos smartphones, que representam um conceito em uma única imagem.
Eles são muito populares nas redes sociais e em comunicações de troca de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.
Os emojis foram descritos assim em uma coluna da revista Wired,
especializada em tecnologia: "eles poderiam ter sido parte de um dos
sistemas gráficos mais antigos do mundo, ou seja, bem mais que símbolos
simpáticos no seu celular".
Primeiro é preciso erradicar a ideia de que os traços das grutas europeias são figuras geométricas, diz a cientista.
"Usamos esta comparação na falta de uma melhor. Mas isso condiciona a
maneira como os vemos. Por exemplo, deveríamos pensar que encontramos
desenhos de animais e humanos, e nos perguntar: onde está a natureza?
Por que nunca pintaram uma árvore ou um rio, que são elementos
importantes na vida de uma sociedade coletora-caçadora?"
Assim, a
hipótese é que as figuras se refiram a coisas que não aparecem de forma
óbvia nos desenhos: uma montanha, as estrelas, uma arma...
Não são formas abstratas, como sugere uma análise superficial, mas representações de ideias padronizadas.
Na sua simplicidade, os símbolos também têm outra qualidade: são democráticos, afirma Von Petzinger.
"Desenhar um mamute ou um cavalo exige habilidades que poucos têm. Mas um quadrado ou um zigue-zague, qualquer um pode fazer."
E por serem mais acessíveis, os traços são melhores como ferramenta de
comunicação: virtude desejada por qualquer linguagem que se preze.
Mas a paleoantropóloga não se conforma com estas hipóteses e quer mais.
Qual será seu próximo passo na busca de sentido para os desenhos misteriosos?
Entrar, com a ajuda de robôs submarinos, em grutas submersas e
inexploradas da costa da Cantábria, no norte da Espanha, para buscar
mais signos, mais traços, que joguem luz sobre como o homem moderno
aprendeu a escrever.
Fonte: UOL
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