sábado, 6 de dezembro de 2008

A civilização perdida da Amazônia


Caverna da Pedra Pintada 11.200 anos atrás. Enquanto mulheres e crianças saem para colher castanhas-do-pará, os homens estão no meio da mata úmida caçando anta.

A cena foi reconstituída a partir de uma descoberta que está colocando a arqueologia de pernas para o ar. Ela indica que o homem chegou ao continente americano há muito mais tempo do que se supunha, se adaptou bem a um ambiente considerado hostil e criou uma cultura superior à de outros pré-históricos de sua época.

A SUPER foi até lá ver de perto o berço da cultura pré-histórica do Amazonas. Agora é a sua vez.


Os vestígios do brasileiro pré-histórico


Na opinião dos cientistas, selva, sombra e água fresca nunca foram condições ideais para o homem se desenvolver, especialmente se a floresta fosse fechada e o volume de líquido pudesse cobrir quilômetros de vegetação, dificultando a caça, como acontece na Amazônia.

De fato, a arqueologia sempre desenterrou vestígios humanos em regiões secas e de temperatura amena. A partir de agora, a teoria pode mudar.

Isso porque a americana Anna Roosevelt, professora da Universidade de Illinois e curadora do Museu Field de Chicago, achou indícios de uma cultura que teria evoluído em plena bacia amazônica no período paleolítico.

De 1990 a 1992, Anna fez oito viagens a um sítio arqueológico em Monte Alegre, município a 1 169 quilômetros de Belém, no Pará.

Ela já havia estudado as cerâmicas do Museu Paraense Emílio Goeldi, na capital paraense, e estava convencida da passagem do homem pré-histórico por aquelas bandas.

Com uma equipe de estrangeiros e brasileiros, chegou à Caverna da Pedra Pintada. Lá dentro, encontrou muito mais do que esperava.

Os vestígios provam que o homem viveu ali há pelo menos 11 200 anos, ocupando a caverna em quatro períodos ao longo de 1 200 anos. Essa datação, feita por cinco laboratórios diferentes, ameaça a tese de que a ocupação do continente americano ocorreu há somente 12 000 anos, através do Estreito de Bering .

Mas a maior reviravolta diz respeito à própria evolução. "Esta descoberta mostra que o desenvolvimento humano em florestas tropicais não apenas era possível como natural", disse Anna à SUPER. Para a arqueóloga, esses "paleoíndios" fizeram mais do que sobreviver.

Eles manifestaram seu conhecimento em pinturas rupestres "grandiosas", como ela diz.


Meu reino por um pouco de terra firme...


Descendo o Amazonas de barco, dá para ir de Santarém a Monte Alegre em cinco horas. A velocidade média é de 25 quilômetros por hora.

É um passeio fascinante e assustador. Especialmente na época da cheia (de dezembro a março), quando a água cobre parte da floresta.

Parece que nunca mais vai se pisar em terra firme. Difícil imaginar que uma civilização pudesse ter aparecido num lugar assim. Mas o fato é que apareceu.

A descoberta de Anna Roosevelt vai mudar a lenta rotina da cidade de Monte Alegre. O prefeito Mário Ishiguro quer colocar guardas florestais nos acessos às serras, numa extensão de 100 quilômetros quadrados, para proteger as pinturas contra predadores.

"Vamos criar um parque nacional de um jeito ou de outro. Aquilo ali é um patrimônio da humanidade", diz Nelsí Sadeck, engenheiro da secretaria dos transportes e assessor do prefeito "para assuntos complicados".


Pistas do século XIX


Foi Sadeck quem encontrou a arqueóloga no meio da rua, procurando por alguém que a levasse até as serras. Desde então, virou pau para toda obra da cientista.

Anna soube das pinturas lendo o livro Viagens pelos Rios Amazonas e Negro, de 1853, escrito pelo naturalista inglês Alfred Russel Wallace, co-autor da teoria da evolução ao lado de Charles Darwin. Wallace havia chegado a Monte Alegre em agosto de 1849.

No livro ele conta que visitou primeiro o lugar que hoje se chama Pedra do Pilão, "passando por cima dos rochedos, com risco constante de cair no abismo". Ali perto Wallace achou pinturas preservadas nurn grande paredão rochoso, o Painel da Pedra do Pilão.

Fez, então, a primeira descrição científica daquela arte pré-histórica. "Os riscos eram vermelhos. As inscrições pareciam recentes, pois não estavam descoradas.

Nenhum dos homens tinha idéia de sua antiguidade". Nem ele, pois ainda não existia a tecnologia necessária para fazer a datação. Agora, Anna Roosevelt afirma que algumas delas têm 11 200 anos.

Ainda hoje é uma aventura ir ao Mirante, um amontoado de rochas bem no cume da Serra do Ereré, onde fica a pintura conhecida como A Lua e o Sol Raiado.

Comunicando-se diretamente com os satélites GPS (que em minutos mapeiam qualquer ponto do planeta), Sadeck mediu a altura exata do pico, 305 metros acima do nível o mar, e a distância da cidade, 12 quilômetros.

Isso em linha reta, porque entre os dois pontos, a floresta encharcada pelo rio é intransponível. A saída é pegar um desvio de 45 quilômetros por estrada precária.

Chegando às serras, é preciso escalar as encostas até as cavernas e paredões onde estão os desenhos. As escaladas não são grandes, coisa de uns 50 metros. Mas leva cinco horas para fazer o roteiro completo.

Dá vontade de sugerir que as escolas incluam a disciplina de alpinismo no curso de jornalismo. Além, disso, os monte-alegrenses avisam que a área é infestada de cascavéis. Mesmo assim, vale mais do que a pena.

Nenhuma fotografia transmite a força que as pinturas têm ao vivo. Uma das mais impressionantes é a dupla de espirais na Caverna da Pedra Pintada, tida como uma representação das trompas femininas.

Especialmente porque ao lado se vê o contorno do órgão reprodutor masculino. Tão interessante quanto a imagem de uma mulher dando à luz .

Outros desenhos mostram detalhes sobre plantas e animais. Ou seja, os pintores tinham um bom conhecimento de botânica e biologia ainda que em termos simples.


7000 anos com a mão no barro


Desenhos e pontas de flecha são apenas um dos indícios da incrível cultura construída pelos povos de Monte Alegre.

Acima deles, no buraco escavado, há restos também importantes. São fragmentos de ceramica, restos de cuias e vasos, com até 7 600 anos de idade.

Podem representar os primeiros sinais de um desenvolvimento tecnológico como poucos já vistos na história da humanidade. O motivo dessa suspeita é que a Amazônia tem sido urna mina de ouro para os estudiosos da cerâmica.

Por todos os lados se vêem as peças de uma arte que, tudo indica, foi cultivada e aprimorada milênio após milênio, às margens dos grandes rios da região.

Às vezes nem é preciso escavar: este ano (1996), em frente a Manaus, o Amazonas desbarrancou um pedaço grande das margens e pôs à mostra magníficas urnas funerárias de barro.

Ainda não foi possível estudá-las e datá-las. Como muitas outras relíquias do passado, as urnas forarn incorporadas à preciosa coleção da região.

"Já são mais de mil locais com restos de cerâmicas", avalia a arqueóloga Vera Guapindaia, do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém. Uma das maiores conhecedoras do assunto, Vera explica que o mapa cultural da Amazônia pré-histórica ainda está por ser desenhado.

"Os sítios mais conhecidos são os da Ilha de Marajó e os da cidade de Santarém", diz ela. São objetos de todos os tipos, esculpidos na argila e depois decorados com habilidade excepcional.

Mas Vera adverte que não dá para dizer que os sítios de Marajó e Santarém sejam os mais importantes. "Amanhã alguém pode encontrar coisas mais sensacionais num lugar que nem se esperava".

Pelo que se sabe, a cerâmica amazônica mais sofisticada começou a ser produzida por volta de 3 000 anos atrás. São dessa época os exemplares mais antigos de Santarém e Marajó.

Suspeita-se que foram feitos por profissionais que moravam em sociedades avançadas. Isso porque, numa comunidade primitiva, todo mundo faz um pouco de tudo no dia-a-dia.

Só numa estrutura social bem organizada as tarefas podem ser divididas. Aí, cada um se dedica em tempo integral a um trabalho específico, no plantio, na pesca, na guerra — e até nas oficinas de cerâmica.


Metrópole do mundo antigo


Ninguém sabe como eram ou o que aconteceu com essas sociedades. O fato é que a cerâmica continuou sendo importante na Amazônia, pois os índios da região são grandes mestres da arte ainda hoje.

Outro fato indubitável é que a tecnologia do barro foi dominada muito antes de 3 000 anos. Em Monte Alegre, Anna Roosevelt mostrou que ela existia há 7 500 anos. Num outro lugar, chamado Taperinha, perto de Santarém, Anna datou peças ainda mais antigas, com 8 000 anos de idade.

Vera conta que os pesquisadores do Goeldi conseguiram fazer pelo menos mais duas datações importantes. Em Salgado, ainda nas vizinhanças de Santarém, algumas peças têm 4 900 e outras têm 3 400 anos.

Anna acredita que as relíquias amazônicas estão ligadas entre si, em maior ou menor ou menor grau.

Está convencida que as pontas de flechas de Monte Alegre representam um marco, o início de um gigantesco processo de desenvolvimento cultural na região que, mais tarde, passou para a tecnologia da cerâmica e não parou mais.

Até que a chegada dos portugueses interrompeu o processo. Anna especula que Monte Alegre, há 11 000 anos, poderia ter nada menos que 300.000 habitantes, quase cinco vezes mais do que a população atual. Se foi assim, a região teria sido uma das grandes metrópoles do mundo em sua época.


Fartura trouxe progresso


Mas a pesquisadora ainda não tem dados suficientes para comprovar suas idéias. Por enquanto, ela se baseia naquilo que viu nas cavernas: um alto grau de conhecimento, sugerido pelas pinturas, e uma grande diversidade de frutas e animais utilizados na alimentação, conforme se comprova pelas escavações.

O povo de 11 200 anos, segundo o palpite da arqueóloga, tinha melhores condições materiais que os atuais indígenas brasileiros. Explorando com eficiência a floresta, os paleoíndios obtinham mais recursos do que precisavam para a simples sobrevivência.

Tinham condições de progredir. Anna chega a suspeitar até que eles provocaram alterações na própria floresta. Não é impossível.

O homem realmente pode favorecer certas espécies em detrimento de outras, aumentar a produtividade do solo ou modificar parcialmente o curso dos rios.

Se Anna estiver certa, a Amazônia não foi apenas um fértil berço de civilização. Foi também, pelo menos em parte, criada pelo homem.


A polêmica povoação da América


As descobertas feitas em Monte Alegre podem derrubar de vez um dos mais capengas dogmas científicos, o de que povos asiáticos começaram a povoar o continente americano numa viagem da Sibéria para o Alasca há somente 12 000 anos ou pouco antes disso.



Alguns antropólogos e arqueólogos acham que a travessia ocorreu há mais tempo, durante uma das várias glaciações ocorridas nos últimos 100 000 anos.

Mas a maioria fecha com a teoria de que a passagem aconteceu mesmo na última glaciação, por volta de 12 000 atrás. Foi a última oportunidade de os andarilhos alcançarem o Canadá a pé. Depois, o derretimento do gelo fez a água do mar subir cerca de 100 metros, dificultado o acesso.

As evidências mais bem comprovadas da primeira civilização desenvolvida na América remontam a 11 400 anos.


Foram encontradas em Clovis, Novo México, sudoeste dos Estados Unidos. Aí, descendentes de migrantes asiáticos teriam desenvolvido uma teconologia de pontas de flecha, feitas de pedra, denominadas pontas de Clovis.


Cadê o elefante?


Anna argumenta que os paleoíndios amazônicos nada têm a ver com a turma de Clovis. Eles assavam seus peixes praticamente na mesma época em que apareceram as flechas norte-americanas.

E fisgavam o almoço com pontas originais, diferentes de qualquer outra. Assim, Clovis não foi o único foco de cultura, nem o mais antigo.

Anna acredita que houve várias levas de asiáticos, e que cada uma tomou seu rumo. Os povos amazônicos podem ter descido a costa do Pacífico, chegando a Monte Alegre depois de cruzar a Colômbia.

Enquanto isso, ainda na opinião de Anna. outro bando seguiu atrás de caça na direção leste dos Estados Unidos e foram dar em Clovis.

"Para mim, Clovis é a tromba do elefante e Monte Alegre, o rabo. Falta descobrir o que está no meio", diz ela, ainda sem saber se há outros povos, intermediários entre os norte-americanos e os amazonenses.

A comunidade acadêmica se impressionou com as revelações da arqueóloga, mas ainda está cautelosa quanto à interpretação de toda essa história.

Para o respeitado arqueólogo C. Vance Haynes, da Universidade de Arizona, os vestígios de Monte Alegre provam que "havia gente perambulando pela Amazônia antes do que se imaginava, mas não há como garantir que eles não descendiam de Clovis".

A arqui-rival de Anna, a arqueóloga Betty Meggers, do Instituto Smithsonian de Washington, nos Estados Unidos, é mais taxativa: "Tudo o que ela está encontrando é resultado de múltiplas reocupações de terra por povos que viviam de caça e coleta, como se vêem até hoje na Amazônia, e não o produto de sociedades indígenas complexas", disse à SUPER.


A procura continua


Com ou sem polêmica, Anna não vai parar por aí. Seu próximo passo será voltar à Amazônia o quanto antes, provavelmente ainda este ano, para tentar achar material orgânico perto do sitio arqueológico de Monte Alegre.

Sabendo que restos humanos podem ser encontrados em lugares muito secos ou totalmente submersos na água (embora esta última possibilidade seja muito rara), ela quer vasculhar os pantanos da região em busca de ossos dos paleoíndios.

"Isso seria maravilhoso", diz a arqueóloga brasileira Christiane Machado, a principal assistente brasileira na equipe de Anna Roosevelt.

"De qualquer forma, o que se descobriu até agora é extremamente importante. Não só para a história do Brasil, como para a história da humanidade: estamos entendendo que o homem não é tão limitado como se pensa."


Fonte: Super

Um comentário:

Anônimo disse...

Um dos maiores mistérios para a humanidade é saber qual o mais remoto indício de nossa origem e jornada,mas........será de fato isso tão relevante a uma humanidade que se auto-aniquila em super produção de lixo e degradação do planeta...tanto trabalho exautivo e despendioso em vão a uma grave constatação ainda nada sabemos e por sermos tão ignorantes desapareceremos sem saber!!!!!!

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