Reunindo cerca de 32 mil neurocientistas e afins, é nessa Meca científica que diversas novidades na área são anunciadas. Este ano não foi diferente.
Dentre os diversos assuntos tratados no congresso, resolvi relatar aqui algumas novidades sobre tratamentos em lesões físicas diretas na medula.
Esse tipo de lesão pode afetar diretamente os feixes nervosos que levam a informação do cérebro às outras regiões do corpo.
O trauma também pode afetar regiões que circulam esses nervos, como ossos e vasos nervosos, atingindo indiretamente o funcionamento da medula.
Obviamente, dependendo da região lesionada, os efeitos causados podem ser mais ou menos pronunciados.
Ou seja, quanto mais próximo do pescoço (cervical), maior será a área atingida, pois os efeitos são sentidos, geralmente, em regiões abaixo da lesão. A gravidade dos sintomas também dependem da natureza da lesão nos nervos, completa ou apenas parcial.
É interessante notar que, por razões éticas e morais, não existe experimentação em humanos. A maior parte do que sabemos vem de modelos animais.
No entanto, fomos aprendendo com o tempo que diferentes espécies têm diferentes capacidades de recuperação.
Por exemplo, camundongos conseguem se recuperar mais rapidamente de uma lesão do que ratos. Ratos têm melhores índices de recuperação do que porcos.
Suínos já não se recuperam tão facilmente e são, provavelmente, os animais experimentais que mais se assemelham aos humanos.
Mesmo assim, roedores são as espécies mais utilizadas, principalmente por uma questão financeira e de espaço.
Estudos apresentados no congresso de neurociência sugerem que a dieta rica em gordura e baixa em carboidratos afeta a taxa de recuperação de ratos lesionados.
Outro estudo demonstrou boa resolução em novas técnicas para o isolamento de células-tronco indiferenciadas antes do transplante, como forma de evitar o surgimento de um indesejado tumor, agravando o quadro clínico.
O estudo aponta para melhores práticas num futuro tratamento com células-tronco em humanos, o que será imprescindível.
Avanços na indução da recuperação pela própria plasticidade neural da medula, por meio da adição de fatores de crescimento, também foram relatados.
Apesar de tantas novidades na área, o melhor tratamento em humanos continua sendo a terapia física. Interessante notar que novos dados estão confirmando isso nos modelos animais.
Em um experimento interessante, roedores foram treinados a usar o sistema locomotor de formas diferentes, por exemplo, andando para trás ou para os lados. Note que roedores só costumam andar para frente.
Para treiná-los a andar em outras direções, o animal foi suspenso numa “maca” que deixa suas patas de fora.
As patas encostam numa esteira que se move em diversas direções. Assim, ao girar a esteira para frente, o animal, intuitivamente, começa a andar para trás, como que tentando compensar sua posição. O mesmo tipo de exercício é feito para os lados.
Depois de algum treino, os animais já se sentem mais confortáveis e executam os movimentos compensatórios naturalmente.
Como se tivessem “aprendido” a andar em outras direções. Pois bem, após o treinamento, os animais foram submetidos a uma cirurgia para causar um tipo de lesão medular controlada - todos os animais tiveram o mesmo tipo de lesão.
Como grupo controle, foram utilizados indivíduos que não tinham passado pelo treinamento anteriormente.
A comparação entre os dois grupos sugere que os animais que aprenderam a usar os movimentos inconscientes da esteira conseguiram se recuperar significativamente mais rápido das lesões do que os sedentários.
O resultado pode ser parcialmente validado em humanos, para os quais existem dados mostrando que atletas têm um nível de recuperação melhor do que não atletas. Mas não me parece exatamente a mesma coisa.
A explicação dos resultados pelo grupo de pesquisa responsável é interessante. Não se baseia nas explicações tradicionais de plasticidade neural (capacidade que o cérebro tem de reorganizar as redes neuronais após um ferimento, por exemplo).
De acordo com as observações feitas, os animais que tiveram o treinamento prévio utilizaram-se dos truques aprendidos na esteira para acelerar sua recuperação.
Obviamente, a lesão impediria que a memória cerebral e consciente desse aprendizado auxiliasse nesse processo, pois a comunicação com o cérebro fora interrompida.
Como explicar então o uso dos conhecimentos adquiridos pelos roedores na recuperação? O grupo sugere que existem “memórias” estocadas na medula espinhal e os animais que receberam o treino conseguem se lembrar de usá-las durante o período de recuperação.
O conceito é novo e arrojado em neurociência. Jamais ninguém ousou propor que a medula também serviria como estoque de memória, mesmo que seja física.
Se isso for realmente verdade, vai revolucionar a forma como vemos a integração do cérebro com o resto do sistema nervoso.
Em geral, existe essa tradicional “separação” em neurociência: os que estudam o cérebro (grande responsável pelas emoções, memórias e cognição) e os que estudam a medula, responsável por movimentos inconscientes e motores.
Talvez essa visão compartimentada e tradicional do sistema nervoso esteja ficando ultrapassada. Vou ainda mais longe: caso isso se comprove, podemos aprender a usar esse tipo de memória física para estocar outros tipos de memória, fazendo um backup de informações importantes na medula ou simplesmente liberando espaço no cérebro para atividades de execução.
Em geral, o estudo da ciência básica acaba fornecendo substrato para pesquisas mais aplicadas. Aqui parece que aconteceu o contrário.
Ao tentar desenvolver protocolos para tratar da lesão da medula espinhal, potencialmente novos conceitos fundamentais do sistema nervoso estão sendo revelados.
PS: A ausência de referências no texto é proposital. Os trabalhos relatados nessa coluna não foram ainda publicados em revistas com avaliação por pares. Portanto, devem ser encarados como preliminares, apenas.
Fonte: G1 Espiral
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