sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Com escassez de terra, mortos cedem espaço para os vivos em Cingapura


"Dedo!", disse o homem com uma pá, olhando de dentro de um profundo e lamacento buraco e exibindo algo que parecia um pequeno galho quebrado.

Ele o colocou cuidadosamente em uma banheira de plástico vermelho na borda do buraco, e desapareceu novamente na escuridão - um túmulo que havia ultrapassado sua data de validade legal.

"Mandíbula!", disse ele em seguida, retirando uma lama cinzenta de um fragmento negro e curvado, e colocando-o ao lado do dedo na banheira de plástico quebrada.

Pedaço por pedaço, fêmur por costela por crânio rachado, Alex Wong Shun Feng, de 58 anos, coveiro profissional, aprofundava-se ainda mais no buraco, arrancando fragmentos de ossos da lama com seus dedos, até que a pequena banheira de plástico ficou cheia.

Ao seu redor, no cemitério Choa Chu Kang e em outros cemitérios deste minúsculo estado, coveiros como Wong se ocupam desfazendo seu próprio trabalho à medida que Cingapura evacua os mortos - para criar espaço aos que ainda não nasceram.

Os restos mortais são enviados para a cremação e colocados em depositórios de múltiplos andares, chamados de "columbarium", que se parecem bastante com os blocos de apartamentos do governo onde muitos deles haviam morado antes do fim de seus interlúdios.

Cingapura está se aproximando de um marco em uma extensa campanha para fechar seus cemitérios, buscando formas de acomodar uma população ascendente.

Em breve, Choa Chu kang - na verdade, um complexo de cemitérios representando diversas religiões - será o único local de sepultamento funcionando em Cingapura.

Por lei, os corpos devem ser exumados após 15 anos para abrir espaço a novos enterros, embora alguns cemitérios mais antigos tenham mantido restos mortais por muito mais tempo.

Conforme as sepulturas são recicladas - e mais famílias optam pela cremação -, membros do conselho municipal afirmam que Choa Chu Kang será capaz de acompanhar as mudanças.

Wong, coveiro há quase 40 anos, continuará trabalhando dobrado enterrando e desenterrando os mortos, exumando duas ou até três sepulturas por dia.

Fantasmas pairam no local enquanto ele trabalha, disse Wong, invisíveis ao lado dos membros da família reunidos neste funeral reverso, mas ele já conhece bem os espíritos e não sente medo.

As exumações de Wong fazem parte de uma redefinição, em grande parte da Ásia, do conceito de funeral.

Este é um continente onde os ancestrais são reverenciados e suas sepulturas são locais de adoração, mas onde números absolutos estão destruindo as tradições funerárias.

Com uma população que deve crescer até 40% e atingir 6,5 milhões de pessoas nos próximos cinquenta anos, Cingapura ilustra a crescente escassez, na Ásia, de um recurso fundamental: a terra.

Na China, onde terra arável e espaço urbano estão em alta demanda, os enterros são proibidos na maior parte do país, embora sejam abertas exceções mediante o pagamento de uma multa.

"O espaço é tão apertado que algo precisa ceder", disse Lily Kong, diretora do Instituto de Pesquisa da Ásia, na Universidade Nacional de Cingapura, que estudou práticas funerárias. "E isso significa uma mudança regional para a cremação e para o columbarium".

No entanto, hoje em dia até mesmo o columbarium está atingindo seu limite, e residentes de locais como Hong Kong e Taiwan resistem à construção de novas instalações em seus bairros, segundo ela. "Essencialmente, temos uma competição de espaço entre os mortos e os vivos".

Dada essa crescente demanda, nichos no columbarium se tornaram investimentos imobiliários em Cingapura, com empresas promovendo compras em bloco e planos de pagamento sem juros.

Ao mesmo tempo, novos métodos de economia de espaço estão surgindo, como urnas funerárias biodegradáveis que podem ser regularmente suplantadas, ou sites na internet projetados para rituais de luto - onde são colocadas à venda velas virtuais, flores e oferendas.

No Japão, alguns columbariuns mecanizados trarão a urna de um repositório subterrâneo - da mesma forma que algumas garagens mecânicas entregam carros a seus donos em elevadores individuais.

Em Hong Kong, onde o tempo de espera por um nicho num columbarium pode chegar a cinco anos ou mais, o governo tem tentado, com limitado sucesso, persuadir as pessoas a jogar as cinzas no mar.

Uma empresa de Cingapura anunciou o transporte e um novo sepultamento de corpos na Nova Zelândia.

Outras empresas ao redor do mundo fazem outra oferta, ainda mais ousada, de enviar restos mortais ao espaço, em foguetes.

Wong é um classicista, para quem o enterro é uma questão de terra, ossos e músculos, um antigo ritual pelo qual o coveiro conduz a última intimidade de um ciclo de vida mortal.

Os ossos e seus caixões se decompõem, em sua maioria, e poucos dos esqueletos exumados estão completos.

Seus dedos grossos e cheios de calos puxam os ossos da terra com delicada precisão, e seu cigarro envia um redemoinho de fumaça no ar - como uma coluna de incenso votivo.

Quando sua pequena banheira de plástico vermelho fica cheia, Wong a leva até a cabeceira do túmulo, onde ela se torna uma verdadeira banheira - ali, ele ritualmente limpa os ossos com uma garrafa de vinho de arroz.

Ele coloca os ossos em grandes sacolas plásticas brancas, e os familiares os levam a um crematório vizinho, protegidos do sol por pequenos guarda-chuvas de papel e seguidos, segundo Wong, pelos espíritos dos falecidos.

Do lado de fora do cemitério, Wong parece um homem separado de tudo, ao se mover pelas modernas ruas de Cingapura, onde morrer é geralmente uma abstração.

Algumas vezes ele exala um sopro de morte, "malcheiroso e oleoso, como o odor de um cadáver, especialmente quando transpiro", disse.

Wong mora sozinho e passa as noites em seu pequeno apartamento ou no cemitério, entre seus companheiros mais familiares, os fantasmas.

Algumas vezes eles brincam com ele, apenas para mostrar que estão ali, afirmou Wong, exibindo rostos assustadores como demônios do Dia das Bruxas. Outras vezes, parece que estão tentando dizer algo, mas ele nunca foi capaz de compreendê-los.

Na maior parte das vezes, eles simplesmente vêm para observar. "É como na vida real", disse ele.

"Se algo está acontecendo, as pessoas gostam de vir e dar uma olhada. Se alguém cai ou acontece um acidente, as pessoas param para ver. É exatamente a mesma coisa".

Quando a exumação está completa, os fantasmas se afastam e Wong torna a encher a cova, erguendo uma enxada bem acima de sua cabeça e descendo-a sobre a terra macia.

"A lápide está quebrada e pulverizada", disse ele, e a recolheu como entulho a ser usado em aterros ou locais de construção, enquanto a construção de uma Cingapura cada vez mais nova segue em frente.


Fonte: UOL



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