Diante do espelho, até 2% da população mundial se assusta com o próprio reflexo.
Mesmo que não tenha nada de errado com seus rostos e corpos, esses indivíduos enxergam-se de forma distorcida. É como se estivessem dentro de uma sala de espelhos mágicos de um parque de diversões: embora normais, se veem como verdadeiras aberrações.
Agora, uma pesquisa da Universidade da Califórnia, publicada na revista especializada norte-americana Archieves of General Psychiatry, revela que a forma como o cérebro dos portadores do distúrbio processa as imagens segue um padrão anormal, principalmente quando eles deparam com a própria aparência.
Apesar de reconhecer que mais estudos precisarão ser levados adiante, o principal autor, o psiquiatra Jamie Feusner, acredita que o problema pode ser não apenas comportamental, mas ter bases fisiológicas.
Enquanto as pesquisas avançam, as pessoas dismórficas seguem lutando para superar o problema.
Os pacientes tendem a considerar excessivamente os pequenos detalhes, como rugas finas e quase imperceptíveis, em vez de enxergar o rosto - ou o corpo - como um conjunto. As consequências do distúrbio são graves.
– São pessoas tímidas, ansiosas e deprimidas. Elas têm obsessão por detalhes que ninguém nem sequer presta atenção.
Algumas se recusam a sair de casa, outras sentem necessidade de cobrir o rosto ou o corpo e também há as que fazem múltiplas cirurgias plásticas.
Cerca de metade dessas pessoas é hospitalizada em alguma fase de suas vidas e por volta de um quarto tenta suicídio – relata Feusner.
E são os prejuízos na vida que diferenciam os dismórficos de outras pessoas que simplesmente não estão felizes com a aparência. Nessa disfunção, o sofrimento emocional é significativo, e a rotina é afetada fortemente. Há quem deixe de ir trabalhar ou mesmo fuja de entrevistas de emprego, com medo de serem ridicularizados.
– É preciso ficar atento ao impacto da insatisfação com a imagem na vida da pessoa. Se há muito sofrimento psíquico ou prejuízo no dia a dia, deixa de ser uma simples insatisfação e passa a ser um transtorno psiquiátrico.
Em geral, quem sofre desse problema apresenta dificuldades emocionais e sintomas como depressão e ansiedade.
Então, é necessário procurar ajuda especializada – sugere a psiquiatra Carolina Meira Moser, da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.
Cabe ressaltar que quem sofre com dismorfia corporal não tem nenhum problema de imagem grave, como má formação do rosto.
O que ocorre é que eles dão uma ênfase muito grande a pequenas imperfeições, comuns a todos.
O tratamento do transtorno, em geral, requer uma abordagem psicoterápica para que a pessoa possa compreender a verdadeira natureza de seus sentimentos de inadequação.
Apesar de não haver medicações específicas para o distúrbio de imagem corporal, algumas drogas ajudam a reduzir sintomas, como depressão e ansiedade, melhorando o quadro geral do paciente.
Mesmo que não seja curado, o tratamento ajuda o dismórfico a se aceitar melhor e conseguir levar uma vida normal.
Entrevista: Jamie Feusner, psiquiatra
"Não tem nada a ver com vaidade"
As anomalias identificadas no cérebro de pessoas dismórficas são a causa ou a consequência da doença?
Jamie – Nós não sabemos a resposta. É possível que o processo visual anormal - talvez até mesmo herdado - possa predispor algumas pessoas a desenvolver a dismorfia corporal. Por outro lado, é possível que a dismorfia surja por outros fatores, influencie o cérebro e cause o processo visual anormal.
Precisamos prosseguir com pesquisas adicionais para entender melhor o problema. Fizemos um estudo recente que demonstrou anomalias no processo visual de objetos sem rosto, como casas.
Isso é mais uma prova de que os problemas no processo visual podem ser a principal causa, embora não resolva ainda a questão.
Costumamos associar a dismorfia corporal a pessoas altamente vaidosas. Seu estudo mostrou que o problema não é apenas comportamental, mas tem base fisiológica. Está correto dizer que mesmo as pessoas que não se preocupam excessivamente com a aparência podem ter dismorfia?
Jamie – Acho que provavelmente alguém que herda uma série de genes (ainda desconhecidos) predispostos e tem uma certa combinação de fatores pode desenvolver o problema. Eu não vejo uma distinção entre problemas psicológicos e fisiológicos.
São diferentes questões, mas com raízes no cérebro e têm múltiplos fatores determinantes, como genes, ambiente, desenvolvimento, cultura, relacionamentos etc.
Definitivamente, a dismorfia não é vaidade. A vaidade é quando a pessoa se preocupa com sua aparência porque tem orgulho dela e acredita que pode ser atrativa.
Pessoas com dismorfia podem ser consideradas praticamente o oposto. Embora sejam preocupados, essa preocupação é porque pensam que são extremamente feios.
Existe um padrão comportamental que assemelha pessoas com dismorfia e aquelas que têm transtorno obsessivo compulsivo?
Jamie – Sim, acredito que há padrões similares em ambos distúrbios. Isso pode, nos dois casos, estar relacionado à hiperatividade cerebral que encontramos na pesquisa, mas precisamos estudar melhor para compará-los diretamente e entender, definitivamente, como isso ocorre.
Uma busca obsessiva
A psicóloga Ana Paula Pongelupe, diretora do Conselho Regional de Psicologia da 1ª Região, diz que pesquisas como a conduzida por Jamie Feusner são importantes para compreender melhor o problema e até auxiliar o desenvolvimento, no futuro, de um medicamento para pessoas que sofrem com dismorfia corporal. Mas ela lembra que a neurofisiologia não explica, sozinha, os distúrbios do comportamento.
– Temos que imaginar que somos um ser integral. Não dá para separar a parte emocional da fisiológica. Ninguém sabe dizer onde começa uma e termina a outra – diz.
Especialista em transtornos alimentares, a psicóloga diz que a dismorfia corporal pode se manifestar de diferentes formas, como a anorexia, a bulimia e a vigorexia (treino físico excessivo em busca do corpo perfeito).
Em todos os casos, há uma distorção da forma como a pessoa percebe sua aparência, e isso passa a ser um a obsessão.
A doença costuma se manifestar, principalmente, na adolescência. Há várias causas e motivações para o início da dismorfia, mas simples ações podem contribuir para o problema.
Chamar uma criança de "feia" parece um gesto inofensivo. Porém, tende a causar consequências graves em indivíduos mais suscetíveis. Além disso, influências próximas contribuem para formar a doença.
– Uma mãe que supervaloriza a beleza e trata a imagem como um grande investimento pode influenciar os filhos a se preocuparem exageradamente com a estética.
Apenas isso não causa a dismorfia corporal, mas ajuda a desenvolver o problema – ressalta o psicólogo Roberto Vasconcelos, especialista em psicoterapia.
Como é o tratamento
:: Nas psicoterapias, os profissionais lançam mão do diálogo como principal arma para ajudar o paciente a dar a volta por cima.
:: A estratégia é fazer com que o dismórfico mude a forma de pensar e entenda que a aparência não deve ser o foco da vida e, principalmente, de que pequenos "defeitos" não precisam ser levados a sério
:: A família é fundamental nesse processo. A ideia que os parentes deixem de lado a pressão estética e demonstrem amor e amizade sempre, sem fazer relação entre afeto e beleza.
:: Os parentes também são importantes para evitar o distúrbios. Repressão, abusos sexuais, pressão pela beleza e perfeccionismo são componentes que, somados, podem contribuir para o surgimento da dismorfia.
Será que tenho dismorfia?
:: A preocupação com a beleza é algo normal e, na maioria das vezes, está longe de ser uma doença
:: Porém, fique atento se você notar se tem uma preocupação exagerada: alguns sinais podem revelar que o problema é mais sério
:: O principal sintoma da dismorfia é a ênfase em qualquer "defeito" do corpo, principalmente no rosto. A pessoa se olha de maneira exageradamente negativa.
:: Por causa de uma ruga um pouco maior do que a média, por exemplo, o paciente pode acreditar que será ridicularizado se sair de casa e, assim, opta pelo isolamento social.
Entenda a pesquisa
:: O que os pacientes com dismorfia corporal têm em comum, além da aversão à própria fisionomia ou ao corpo, é uma alteração no córtex órbito-frontal esquerdo, área que faz parte do lobo frontal, uma região cerebral associada à coordenação das expressões faciais.
:: Dependendo do tipo de imagem que veem, essa área pode ficar hiper ou hipoativada. Para chegar a essa conclusão, a equipe de cientistas da Universidade da Califórnia submeteu 33 pessoas ao exame de ressonância magnética e analisou como o cérebro se comportava quando os voluntários viam diversos tipos de fotos.
:: O cérebro dos dismórficos apresentou alterações no processo visual quando eles observavam a própria imagem normal e modificada com ampliação dos detalhes.
:: Segundo os pesquisadores, não é confiável dizer, ainda, se a visão distorcida que o dismórfico faz da própria imagem é a causa ou a consequência das alterações cerebrais.
Fonte: Zero Hora
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