quarta-feira, 5 de maio de 2010

Misticismo de Brasília cria doutrina de pirâmides, espíritos e roupas coloridas




O ser supremo é o índio Seta Branca, que lidera a corrente indiana do espaço, um regimento de espíritos de luz.

A Terra foi colonizada há 32 mil anos por seres imortais do planeta Capela, que se miscigenaram com os terráqueos e criaram várias civilizações ao longo da história.

Esse não é o enredo de Avatar 2. São as revelações feitas por Neiva Chávez Zelaya, uma viúva caminhoneira que se dizia reencarnação de Cleópatra e Nefertiti.

A médium fundou nos primeiros anos do Distrito Federal o Vale do Amanhecer, doutrina que mistura espiritualismo, cristianismo, crenças africanas e referências aos maias, espartanos e ciganos, além dos moais da ilha de Páscoa.

“Se você não acredita, por que está aqui?” A pergunta dirigida à reportagem do UOL Notícias não é intimidadora.

Transmite a mais pura surpresa em meio aos altares suntuosos, à meia-luz reinante no templo e ao forte cheiro de incenso feito da resina da almesca.

“Sou jornalista, vou escrever uma matéria”, tento me explicar para Joaquim Antonio, mestre da doutrina brasiliense.

“Ah, você é um ateu à toa”, sentencia o médium. O internauta que não acredita neste texto, por exemplo, pode clicar no botão abaixo chamado “comunicar erro”.

Não há dispositivo semelhante quando se fala de fé – ainda mais nessa igreja que é a face mais conhecida do misticismo que cerca Brasília. Sendo assim, o jeito é entrar na lógica deles.

O sobrenatural e o simbólico estão na cidade desde antes de sua fundação. No marketing para transferir a capital para o Planalto Central foi muito utilizada a história de um sonho do religioso italiano Dom Bosco no século 19 que teria antevisto entre os paralelos 15 e 20 surgir a terra prometida ao lado de um lago que verteria “leite e mel”. Só faltou relatar que em outro trecho o santo falava que a visão era na Bolívia.

A capital surgia do cruzamento de dois eixos, uma cruz urbanística, mas também cristã. Em Brasília, a utopia modernista desenvolvimentista ganhou o reforço teológico.

Os monumentos no cerrado pareciam miragens. O traço de Oscar Niemeyer carregava em futurismos – não por nada, o russo Yuri Gagarin, o primeiro homem a ficar em órbita, disse se sentir em outro planeta ao aportar no DF.

Há uma contabilidade de 2.500 locais místicos na capital e seu entorno. Um dos mais chamativos é a Cidade Eclética, cravada desde 1956 em Santo Antonio do Descoberto (cidade goiana próxima ao DF) e fundada por um aviador médium.

O sincretismo é a tônica principal. E no Vale do Amanhecer ele está em toda parte. A cruz cristã, a judaica estrela de Davi e a lua crescente muçulmana estão juntas com imagens de entidades do candomblé, conceitos espíritas e pirâmides egípcias.

Mas o que chama primeiro a atenção são as vestimentas e a arquitetura do refúgio que virou um bairro hoje com 15 mil habitantes no caminho entre Brasília e Planaltina.

Os homens, chamados de “jaguares”, usam capas que mais parecem saídas de um filme de vampiro.

A cor, contudo, é o marrom dos franciscanos. A roupa é tão cheia de símbolos que lembra a indumentária dos cangaceiros.

Já as “ninfas”, como são chamadas as mulheres, portam batas multicoloridas, onde o amarelo significa sabedoria e o lilás simboliza a cura.

Por vezes, elas carregam lanças e ornamentam a cabeça com uma grinalda com tantas cores como o arco-íris.

“Estou aqui há 35 anos e precisaria de mais 35 para entender tudo o que tia Neiva ensinou”, afirma Domingos Pereira, que recepciona quem chega ao templo nas proximidades da cidade-satélite Planaltina.


Portão ostenta símbolos cristão, judaico e muçulmano


O local é ocupado na maior parte pela “mesa evangélica”. Nela, os médiuns estalam os dedos, dão passe nos “irmãos sofredores” e proferem a cada instante a frase: “Obatalá, entrego neste instante mais uma ovelha para seu redil.”

“Somos medianeiros entre o céu e a terra. Manipulamos energia para salvar os desastrosos, os vingativos, os impregnados de ódio, os que têm um cascão de espíritos da escuridão sobre eles.

Esse novo serviço é um desenvolvimento que não tem pressa. Ele vem com o merecimento de quem segue a lei do auxílio e os três pilares: tolerância, humildade e amor”, afirma Pereira.

Diante da imagem de um índio sentado que ergue uma lança com as duas mãos, ele explica: “É nosso pai: Seta Branca.

Ele rege o planeta terrestre.” Pereira faz o mesmo diante do retrato de uma senhora de traços severos e maquiagem pesada.

“É nossa mãe: tia Neiva. Ela nasceu em Propriá, no Sergipe, e criou aqui isso tudo que o senhor está vendo”, se maravilha.

Ela morreu aos 60 anos em 1985, deixando uma legião de seguidores e um dos filhos na liderança da crença, com dezenas de templos pelo país.


As roupas coloridas são o diferencial do culto brasiliense


O pintor de paredes Joaquim Antonio aparece como segundo guia nos corredores escuros do templo e me conta seu currículo espiritual: “Já tive 19 encarnações.

Na última, fui um senhor de engenho que só fez maldade. Voltei para resgatar meus débitos e pagar as dívidas. Esta é uma encarnação expiatória neste planeta de transição que é Terra.”

Logo, Joaquim começa a filosofar e tirar conclusões. “Hoje, existe o celular, mas antes nos comunicávamos por telepatia.

Hoje, tem avião, mas antes havia teletransporte. A matéria é uma prisão. Quanto mais tecnologia mais o homem se parece com uma minhoca dentro da terra”, busca me convencer.

Mas seus argumentos caem por terra após apresentar suas teorias históricas. “Os mortos na Segunda Guerra Mundial [1939-1945] tinham que sofrer.

Eles estavam pagando o que fizeram em outras encarnações. Os atingidos no último terremoto do Haiti também. Fazem muita coisa ruim por lá.”

Ele fica diante de um altar com imagens dos faraós Tutancâmon e Akenaton. “As pirâmides não foram feitas pelos egípcios. Foi outra civilização, anterior e superior”, dispara Joaquim.

No Vale do Amanhecer existe um exemplar das pirâmides, frequentado por fileiras ordeiras de adeptos.


Oração escrita em local do culto do final da tarde dentro do Vale do Amanhecer


Mas há outros casos como uma sede da CEB (Companhia de Energia de Brasília), a unidade local da LBV (Legião da Boa Vontade), além de casas piramidais no requintado Lago Sul, cujo desenho não é uma referência à pirâmide social do país.

É tanta pirâmide que dá para entender de onde saiu a lenda urbana de que os EUA estavam desconfiados que havia uma usina nuclear no DF, mas depois descobriram que a energia vinha das pirâmides candangas. Quem quiser que acredite.


Fonte: UOL


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