segunda-feira, 26 de março de 2012

Assombrações da Quaresma estão na roça



Nas estreitas estradas de terra que dão acesso às fazendas do município de Uberlândia, ainda é possível se deparar com as mulas sem cabeça ou com o próprio diabo nas suas várias formas assombrando pessoas descuidadas que se aventuram a sair nas noites da Quaresma.

“O cavalo parou, assustou-se, depois galopou como um doido, pulou cerca, relinchou e eu, mais desesperado ainda, em cima dele, eu vi, era o Gulu (o diabo), uma coisa sem forma, mas que só de pensar dá arrepio pelo corpo todo”, afirmou o vigilante Marcos Moura.


Marcos diz que o cavalo sempre sente quando tem assombração


Nascido e criado no pequeno distrito rural de Cruzeiro dos Peixotos, Marcos Moura conta já ter visto tudo quanto é criatura do outro mundo.

Uma vez, uma assombração cutucou na sola do pé dele. “Meu pai me dizia sempre que quando uma coisa dessa ocorre a gente precisa ter força para falar, perguntar do que a pessoa (fantasma) está precisando, se quer que acenda uma vela, reze um pai-nosso, mas nessa hora a força desaparece, a gente não tem nem fala”, disse.

São almas que vagueiam, segundo Marcos Moura, à espera de algum conforto. “No lugar onde meu pai morreu, em um acidente na estrada, muita gente já veio me dizer que viu ele por lá ultimamente, eu mesmo não vi. Outro dia, até vi uma pessoa, parecia o vulto de um homem, todo de branco, debaixo de um pé de pau-terra, mas não era ele.”

O vigilante diz que já passou muito medo nas estradas de terra e que seu cavalo é sempre o primeiro a ver as assombrações.

O pedreiro Messias Rodrigo Correa concorda que são os animais quem primeiro dão sinal de que há algo errado pelas matas ao redor. “Cavalo conhece assombração”, afirmou.


Messias mostra o lugar onde há 50 anos morava um lobisomem


Ele foi um dos que já viram um cachorrinho branco que costuma aparecer na Quaresma perto da capelinha onde estão enterradas dez pessoas de uma família, velhos fazendeiros do distrito.

“Esse cachorrinho branco é o Gulu, ele acompanha as pessoas até a sede do distrito, depois desaparece.”

O capeta, segundo ele, assume forma de cachorro, de noiva ou mesmo de um lençol branco que se move e que deixa apavorados os aventureiros da noite.

Mas ele admite que hoje em dia assombração já não aparece tanto. “Antigamente a roça era povoada de sombras, aqui mesmo no distrito, dois homens se transformavam em lobisomem, um deles morava num terreno no fim do distrito e, na Quaresma, assustava as pessoas com seus uivos de lobo”, disse Messias Correa.


Falta de religião


Marcos Moura faz ronda noturna num raio de 30 quilômetros na hidrelétrica de Capim Branco e diz não temer as assombrações.

“Elas não fazem nada contra a gente, basta a gente ter religião e andar correto na vida”, afirmou. Para ele, o aparecimento das assombrações na Quaresma tem a ver com a falta de religiosidade.

“Antigamente, as pessoas não tinham religião, por isso apareciam tantos lobisomens e mulas sem cabeça. Agora estamos chegando num momento que isso pode voltar a acontecer, porque hoje em dia ninguém mais liga para religião”, afirmou.


Assombrações têm cheiros e cores


Ninguém sabe dizer porque esses homens e mulheres que intimidam as pessoas nas noites do sertão só usam branco.

Mas sabe-se que a cor está relacionada à morte. As almas voltam enroladas em panos brancos. O preto, que tradicionalmente é tido como cor fúnebre, só serve para o lobisomem e, às vezes, para a mula sem cabeça, embora essa última apareça de várias cores.

A Mulher de Branco, por exemplo, é um mito universal. Ocorre nas Américas e em toda a Europa. É uma aparição na forma de uma bela mulher que surge nas estradas desertas, pedindo carona.

Além de visões, Marcos Moura diz que é possível também sentir cheiros de assombros. É o caso de uma determinada região na rodovia municipal Neusa Rezende.

“O povo conta que ali já morreu muita gente, eu não sei se é verdade, mas quando a gente passa naquela baixada sente cheiro de bife acebolado”, disse.

O que o cheiro da cebola tem a ver com possíveis mortes no local, Marcos Moura não sabe dizer. Mas crê.

“Deus me livre de passar naquele lugar na Quaresma, a gente sente cheiro de janta, dizem que são pessoas que morreram antes da hora, elas não queriam ir, foram forçadas.”


O lobisomem pega quem pecar


A Quaresma tem essa tradição de revolver lendas. E por que os lobisomens e mulas sem cabeça aparecem sempre nessa época?

A religiosidade da cultura brasileira é a principal responsável, segundo o padre Francisco de Assis Felipe Santiago.

Ele lembra que os missionários aterrorizavam os brasileiros, faziam questão de incutir medo para ganhá-los para a religião.

“Os padres eram bravos e queriam garantir a retidão das pessoas botando medo sobre a vida eterna, um mundo desconhecido e a gente sempre teme aquilo que não conhece”, disse.

Segundo ele, a evangelização repressiva dos primeiros séculos no Brasil levou as pessoas a criarem essas lendas com a ajuda da Igreja.

“Na Quaresma não se podia cantar, tocar violão, fazer festa, andar pelas ruas, então se criava toda uma história de que a pessoa que saísse tinha que voltar cedo para casa, senão o lobisomem ia aparecer para ele.”


Padre Francisco lembra que a igreja ajudou a formar a cultura


Embora a igreja defenda hoje que quem tem fé em Deus não deve temer assombrações, ela não condena quem ainda se apega a esse tipo de história.

“Isso virou uma tradição cultural. No Brasil, religião e cultura andaram de mãos juntas por muitos e muitos séculos, não se rompe com essas tradições de uma hora para outra, é preciso respeitá-las”, afirmou o padre Francisco de Assis.

Segundo ele, as igrejas cobriram todos os seus santos na Quaresma porque os padres acreditavam que o diabo ficava ao redor do santo.

“É o diabo que tenta, o lobisomem que castiga e as almas penadas que vêm pedir que as pessoas paguem votos feitos por elas em vida, isso forma um conjunto cultural que tem raiz na religião.”



Fonte: Correio de Uberlândia

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