segunda-feira, 2 de abril de 2012

Direto do mundo do além




Conheça quatro histórias de arrepiar os pelos.


 Esta matéria é sobre um mundo que nem todos veem e no qual poucos acreditam. É sobre universos próprios. Sobre visões e, por que não dizer, sobre fantasmas que passeiam pelas esquinas de Pernambuco. 


A partir de agora, caro leitor, desprenda-se de conceitos preformatados, livre-se da razão e abra a mente para conhecer assombrações até então desconhecidas. 


Chega de Perna-Cabeluda e Cumadre Fulôzinha. Apresento-lhes os fantasminhas rotineiros. Aqueles que podem estar ao seu lado em qualquer lugar, a qualquer hora. Experimente procurar, se tiver coragem.

“Quando vi aquela mulher baixinha e meio gordinha vestindo branco, andando pela área comum do prédio, já sabia de quem se tratava, mas fiquei calada.” 


Foi assim que a dona de casa Aracy Queiroz, 65 anos, descreveu, com ar misterioso, o justo momento em que viu a primeira assombração da vida dela. 




A baixinha a quem se refere é, segundo conta, Dra. Conceição, uma ginecologista falecida e ex-proprietária da área onde, após sua morte, foi construído o prédio onde Aracy mora até hoje.


“Conheci Conceição em vida. Aqui no bairro da Torre todo mundo se conhecia, sabe? E o filho dela namorou minha prima. Por isso sei que a casa que existia neste terreno era dela e foi dada ao filho, mas a doutora pediu que ele nunca se desfizesse do imóvel. Foi só ela morrer, minha filha, e ele vendeu.” 


A partir da venda, o prédio subiu e a lenda – pelo menos entre os moradores – começou. Entre encontros e desencontros com a tal doutora no elevador, vizinhos e funcionários passaram a conhecer, assim como D. Aracy, a figura do além. “Eu não tinha medo dela. Não podia ter. Conceição era uma pessoa muito boa em vida.”


Mas houve quem achasse aquilo tudo para lá de assombroso. “Certa noite, o porteiro interfonou e pediu que eu descesse para ver uma coisa. Era o elevador. Estava subindo e descendo sem parar. Ia de andar em andar. No começo a gente ainda pensou que fossem as crianças brincando, mas era tarde e, quando chegou no pilotis, vimos que não tinha ninguém. O porteiro ficou tão aperreado que colocou uma cadeira na porta para evitar que o elevador continuasse fazendo aquilo. ‘É ela, não é?’, ele me perguntou. Para não assustá-lo, disse que isso era besteira e subi.” Depois dessa noite, D. Aracy rezou. Em silêncio, conversou com a ginecologista-fantasma e explicou que aquele não era mais o lugar dela. “Acho que funcionou, viu? Ninguém mais a viu.”


D. Aracy, no entanto, estava destinada a esbarrar com outra assombração. “A segunda e a última”, espera. Viúva há um ano, certa noite, apertada para fazer xixi, levantou-se da cama em direção ao banheiro. 


“Quando passo o olho pela sala, meu marido estava sentado no sofá. Juro. Fiquei em choque. Ele disse: ‘Aracy, calma. Vim só para dizer que você não deve assinar nenhum papel. Principalmente se for em branco.’” Dado o recado, o marido partiu. Ela, a essa altura, como uma estátua, continuou sem reação. “Fiz xixi nas calças, acredita?!” Foi a última vez que viu o marido. Nunca assinou nenhum papel sem antes consultar um advogado.


Talvez os fantasmas de D. Aracy a tenham ajudado. Os do artista plástico Jobson Figueiredo, 63, certamente o fizeram. Proprietário de um casarão no Poço da Panela, quase ao lado da igreja, ele se viu intimidado pelas almas penadas que, segundo reza a lenda, lá viviam. 


 “Quando comprei a casa, iniciei um processo de restauração, já que o espaço tinha sido descaracterizado. Foi nesse período que os trabalhadores da obra começaram a escutar barulhos estranhos.”


No ouvido daqueles homens, correntes arrastavam, objetos caíam sozinhos, portas e janelas batiam sem que nem mesmo uma brisa corresse por lá. “Com a repetição, alguns pensaram em desistir do trabalho. Foi quando decidi fazer alguma coisa.” 


E nem pense que Jobson chamou padres ou rezou. Feliz com a presença dos fantasmas no casarão, resolveu invocar os espíritos. “Acendi velas, juntei os homens e chamei os fantasmas. Disse para eles que, a partir daquele momento, fariam parte da nova diretoria do ateliê. E dei a cada um daqueles desconhecidos moradores uma função.”


O negro que arrastava as correntes foi incumbido de tomar conta da segurança da casa. “Pedi que me avisasse se visse alguém entrando, batendo uma porta ou uma janela”, conta Jobson. 


Para o fantasma bagunceiro, que costumava desarrumar tudo, foi concedido um posto especialíssimo. “Seria uma espécie de secretário. Passou a ter o dever de derrubar livros no meu birô, de tomar conta da minha biblioteca.”


Já às mulheres, vistas em forma de vultos passando pelas janelas do casarão, só uma recomendação: “Elas seriam minha inspiração e precisavam continuar seus desfiles, com a função de manter viva a lenda do casarão, citado por Gilberto Freyre como um dos mais mal-assombrados do Recife.” 


A verdade é que Jobson adora as figuras do além que no ateliê fizeram morada. “Nunca os vi, mas não cobro nada deles. Eles já têm muito trabalho, manter a lenda viva.” O pacto com os fantasminhas – que, nesse caso, podem ser chamados de camaradas – funcionou. Os sustos acabaram.



HERANÇA - E é justamente das histórias de convivência entre mortos e vivos – herança da civilização do açúcar – que germina o imaginário popular – e assombrado – do pernambucano. “Digo com certeza absoluta que Pernambuco é o Estado mais supersticioso do Brasil. Nada disso é em vão, a explicação remonta à época das casas-grandes e das senzalas”, diz a escritora e antropóloga Fátima Quintas. Para ela, três são os motivos principais para tanto mal-assombro num Estado só.


O primeiro deles, exemplificado pelo pacto firmado entre Jobson e seus fantasmas-funcionários, é justamente a convivência cortês entre as duas realidades.


“Os aristocratas do açúcar eram enterrados próximo à casa-grande e a imagem do morto, do senhor de engenho, permanecia viva”, explica Fátima, citando uma frase de Gilberto Freyre: “Abaixo dos santos e acima dos vivos estão os mortos vigiando os membros da casa-grande.”


A miscigenação religiosa que aqui se firmou foi outro ponto crucial para a criação de um imaginário coletivo tão ligado ao além.


“O candomblé do escravo, o animalismo do índio, o catolicismo europeu. Tudo se mistura. Até hoje, ninguém sente culpa de percorrer e até acreditar em crenças distintas.” 


Por fim, Fátima cita o sentimento de culpa em relação à escravidão como sendo o terceiro e último fator para Pernambuco ganhar o título de Estado mais mal-assombrado do País. “Numa síntese, é claro.”


A pesquisadora, que diz adorar os fantasmas, ainda não teve a sorte de ver nenhum. “Eles não me dão bola”, brinca. Mas os danados não se inibem em aparecer para quem tem medo. 


O médico-legista João Matoso conta um dos, segundo ele, muitos causos do Instituto de Medicina Legal (IML). O fato aconteceu há uns 15 anos com um amigo dele, que preferiu não se identificar. “Naquela época, não realizávamos necropsia à noite. Ele, de plantão, descansava na sala dos médicos. Levantou-se para ir ao banheiro e, quando voltou para a sala, encontrou uma loura – linda –, de vestido vermelho, fumando um cigarro”, narra.




Foi o perfume da mulher que, segundo João, encantou seu amigo. Conversaram. Ela, elegante, pediu que ele fizesse a necropsia em um dos cadáveres que lá estavam. A loura dizia-se parente do morto.


“Meu amigo explicou que não podia fazer, pois não havia iluminação e condições técnicas adequadas”, continua o narrador. O especialista precisou levantar-se novamente e, ao voltar para o quarto, a mulher – e o perfume envolvente – havia sumido. “Ele desceu imediatamente para reclamar. Afinal, para ela ter chegado até ali precisava ter passado por, pelo menos, três inspeções.”


O problema é que nenhum porteiro havia visto a mulher de vestido vermelho. Com a pulga atrás da orelha, o médico-legista, assustado, foi até onde ficam os parentes à espera da liberação dos corpos e começou a inquirir os que lá estavam. Foi quando uma das pessoas aproximou-se e, assim como a loura perfumada, pediu pelo mesmo cadáver.


“Ele aproveitou para descrever a mulher e perguntar se a haviam visto.” A resposta não agradou: “O rapaz disse: ‘Ah, doutor, a única loura bonita, perfumada e fumante na nossa família é a mãe do defunto. Mas ela morreu faz é tempo.’” 


Foi o suficiente. O médico, acostumado a ver mortos, conviver com a morte e encarar a tristeza que ela causa foi, no fim das contas, assustado por ela mesma. “Ele correu, pegou as coisas dele e foi embora pra casa, esbravejando: ‘O cão é quem dorme aqui.''


Houve também quem picasse a mula, décadas antes do médico-legista. Tudo aconteceu no início dos anos 1940, na Fazenda Amapá, na divisa do Estado com Alagoas. O lugar de muito verde e sinônimo de calmaria foi cenário do pesadelo do vigia da época. 




“Numa madrugada, ele escutou um choro de mulher, mas não conseguia saber de onde vinha. Noites depois, estressado, gritou pedindo que ela parasse ou aparecesse pra que ele pudesse ajudá-la”, conta o ancestral dos donos da fazenda, Pedro Lins, 27. Alguém escutou e apareceu. Mas não foi a chorona, e sim um senhor armado que falou para ele ir embora, pois havia desrespeitado quem ali viveu. E sumiu.


“Meus bisavós só vieram saber disso tempos depois, quando, por acaso, encontraram o vigia sumido andando pela cidade. Nesse dia, contou tudo a meu avô que, curioso, perguntou como era a alma.” Devido ao susto, ele lembrava de pouca coisa. “Disse apenas que o homem tinha um dedo a menos na mão. Logo, meu bisavô identificou: era o antigo dono das terras.”


Depois do episódio, a fazenda, já com fama de mal-assombrada, recebeu a visita de padres, que benzeram o local. Também foi erguida uma capela. Hoje, a antiga casa-grande está lá só para os fantasmas. Ao lado dela, foi construída outra, onde a família Lins continua se hospedando.


Pedro conta também que, há alguns anos, ainda adolescente, pegou a estrada com um grupo de amigos. A missão: caçar fantasmas. Hospedaram-se no lado obscuro da Fazenda Amapá, instalaram câmeras com infravermelho na casa e, amedrontados, amontoaram-se em uma única cama de casal de noite.


“Olhe, não filmamos nada de comprometedor, mas tivemos muito medo. Há quem jure ter sentido algo e ouvido barulhos estranhos no corredor, mas há também quem negue tudo. Não sei.”


E não é que a dúvida de Pedro é algo comum? Fantasma existe mesmo? É verdade ou ilusão? Pense bem: você nunca presenciou algo estranho, que fez seus pelos arrepiarem? Já experimentou, por acaso, olhar atentamente o casarão da sua esquina? 




O terreno ao lado do seu prédio? A antiga casa de campo da família? Conferiu aquele barulhinho no quarto inabitado? A partir de agora, olhos e ouvidos atentos. 


Eles podem estar bem pertinho. Até mesmo nesse exato momento, enquanto você lê esta matéria. Afinal, como diz o ditado popular espanhol: “Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem”.

Agradecimentos à direção da Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre e aos atores Alexandre Lopes, Ana Garcia, Gláucia Sena e Reynolds Pierre Filho. Fotos de Igo Bione e Flora Pimentel. Produção de Manuella Antunes


Fonte: JCOnline

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