Visitantes observam Kherima, a peça mais popular do Museu Nacional;
apenas nove múmias do mundo tiveram um tratamento externo do corpo tão
detalhado
Custódio Coimbra
Destaque no acervo da instituição, relíquia de suposta princesa egípcia teria provocado transe entre visitantes.
Dezenas de pessoas observam a retirada da tampa de vidro de uma mesa,
posicionada no centro de um salão do Museu Nacional, em São Cristóvão.
Sobre ela, agora desprotegida, está o principal artigo da instituição,
uma múmia de quase 2 mil anos, com os membros enfaixados individualmente
e faixas no peitoral e no cinturão. Um professor estimula os alunos a
se aproximarem.
Uma jovem toca nos pés daquele corpo e, em aparente
transe, diz que ele pertencia a uma princesa de Tebas — próximo a onde
está a cidade de Luxor — chamada Kherima, uma virgem que fora
assassinada a punhaladas.
A “revelação”,
ocorrida há cerca de 60 anos, foi relembrada nos últimos dias, durante a
Semana de Egiptologia sediada na Quinta da Boa Vista, e ilustra a
atração e repulsa provocada pelas múmias — uma das mais emblemáticas
representações materiais da morte.
Existem apenas nove múmias no mundo que foram enfaixadas e decoradas sobre linho como Kherima, o que lhes dá uma aparência de bonecas.
Como foram encontradas na mesma tumba, estima-se que sejam da mesma família. Normalmente as técnicas de mumificação não eram tão detalhistas, fazendo com que os corpos hoje pareçam-se com pacotes.
Destino desconhecido
Kherima chegou ao Brasil em 1824, dentro de um caixote de madeira. Era o item mais valioso da coleção de antiguidades que Nicolau Fiengo trazia da Europa.
Não se sabe a nacionalidade de Fiengo — seria italiano ou francês —, tampouco o destino de suas peças. Acredita-se que os artigos iriam para Buenos Aires.
O criador da universidade local era um entusiasta de museus e relíquias. Fiengo, no entanto, teria desistido da viagem, devido a confrontos políticos ou a uma epidemia de febre amarela na capital portenha.
Três anos depois, o imperador D. Pedro I arrematou a coleção, depois levada para o museu em São Cristóvão. Foi o início da primeira coleção de relíquias egípcias das Américas.
— A múmia seria do Período Romano, por volta do século I ou II, quando o Egito começava a adotar o cristianismo — conta Antônio Brancaglion Jr, curador da coleção egípcia do museu.
— A lenda diz que ela teria sido morta a facadas, mas não encontramos marcas que validem esta versão. Provavelmente a causa da morte foi por algo que a mumificação ocultou, como uma infecção.
Kherima foi protagonista de uma série de cultos em meados do século passado. Um deles foi em 1955, logo após a morte de Carmen Miranda, nos EUA. O corpo da artista veio embalsamado para o Rio.
Centenas de pessoas entenderam que ela fora “mumificada” e visitaram o Museu Nacional, levando flores à múmia. Enquanto isso, o corpo da Pequena Notável era exposto sem tumultos no Palácio do Catete, então sede da Presidência da República.
Na mesma década, o professor Victor Staviarski, membro da Sociedade de Amigos do Museu Nacional, começou a ministrar cursos de egiptologia e escrita hieroglífica na instituição.
Staviarski recorria à hipnose e levava médiuns para as aulas. A ópera “Aida”, de Giuseppe Verdi, também contribuía para a criação de um ambiente místico.
O professor também reforçou o corpo docente de um curso noturno de Ciências Herméticas — que, entre outras disciplinas, contava com Magia, Forças da Natureza e Astrologia Esotérica.
— No curso de História, Staviarski dava aulas no auditório, com mais de 100 pessoas, e promovia sessões especiais ao lado da múmia. Participei de uma delas em que o professor pôs uma máscara dourada na cabeça dela — conta a arqueóloga Ângela Rabello, do Museu Nacional.
— Alguns alunos sentiram o odor de rosas, mas não foi o meu caso. Um senhor teve um transe durante a aula e se viu navegando em um barco egípcio junto à múmia.
Em reportagens publicadas na década de 1960, Staviarski assegurou que mais de 100 pessoas entraram em transe em frente à Kherima.
Um grupo de alunos queixou-se com a coordenação do Museu Nacional devido à promoção de “experiências parapsicológicas relacionadas com a exposição de egiptologia”.
Brancaglion também viu alunos que sentiram um “mal súbito” quando participavam de uma palestra ao lado de Kherima.
— Curiosamente isso só acontece com esta múmia — diz.— Talvez seja porque sua aparência é mais humana.
A bioarqueóloga Sheila Mendonça, também ex-aluna de Staviarski, defende o professor.
— Hoje seus métodos são considerados controversos, mas, à época, ninguém sabia como conservar uma múmia. Por isso havia o incentivo de que ela fosse tocada durante as aulas — lembra. — A hipnose estava na moda, e Staviarski a usava para impressionar os alunos.
Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Escola Nacional de Saúde Pública, Sheila acompanhou a tomografia de Kherima.
Segundo a pesquisa, a suposta princesa egípcia teria entre 18 e 20 anos e cabelos curtos e escuros, diferentes dos egípcios.
Seu crânio é semelhante aos dos mediterrâneos, e não ao dos africanos. O cérebro e as vísceras foram retirados durante a mumificação. Os dentes, no entanto, foram preservados. Não havia sinal de doenças.
— Vimos materiais que envolviam o corpo, dando volume às mamas, quadril e abdômen, reforçando o contorno feminino da múmia — destaca Sheila.
— As unhas estavam pintadas e é fácil identificar seus mamilos. Ela, assim como outros membros de sua tumba, tem fraturas nos braços, um processo que deve ter ocorrido durante a preparação do corpo. Os pés foram danificados décadas atrás, quando a peça já estava no museu.
A corrida pelo ‘pó de múmia’
De acordo com Sheila, as múmias começaram a integrar o imaginário europeu no século XVIII. A expansão colonial e o contato com povos estrangeiros mudou os valores do Velho Mundo.
— A Europa passou por um relaxamento de costumes. A morte era vista como algo cada vez mais próximo, uma ideia incentivada pela Igreja e respaldada pelas epidemias de peste — explica a bioarqueóloga.
— Mais pessoas foram ao Egito e o fascínio com as múmias também cresceu. Elas representam um estágio intermediário entre vida e morte. São corpos que não desapareceram, não completaram um processo natural.
As múmias apavoravam a população, mas, segundo Brancaglion, também representavam um negócio lucrativo.
Elas eram destruídas em busca de joias e amuletos. Cabeças, pés e mãos eram vendidos como souvenires; o tronco, despedaçado, rendia um pó usado para a fabricação de tintas, principalmente, de medicamentos. Tratava-se de um artigo comum nas farmácias europeias no século XIX.
Existem apenas nove múmias no mundo que foram enfaixadas e decoradas sobre linho como Kherima, o que lhes dá uma aparência de bonecas.
Como foram encontradas na mesma tumba, estima-se que sejam da mesma família. Normalmente as técnicas de mumificação não eram tão detalhistas, fazendo com que os corpos hoje pareçam-se com pacotes.
Destino desconhecido
Kherima chegou ao Brasil em 1824, dentro de um caixote de madeira. Era o item mais valioso da coleção de antiguidades que Nicolau Fiengo trazia da Europa.
Não se sabe a nacionalidade de Fiengo — seria italiano ou francês —, tampouco o destino de suas peças. Acredita-se que os artigos iriam para Buenos Aires.
O criador da universidade local era um entusiasta de museus e relíquias. Fiengo, no entanto, teria desistido da viagem, devido a confrontos políticos ou a uma epidemia de febre amarela na capital portenha.
Três anos depois, o imperador D. Pedro I arrematou a coleção, depois levada para o museu em São Cristóvão. Foi o início da primeira coleção de relíquias egípcias das Américas.
— A múmia seria do Período Romano, por volta do século I ou II, quando o Egito começava a adotar o cristianismo — conta Antônio Brancaglion Jr, curador da coleção egípcia do museu.
— A lenda diz que ela teria sido morta a facadas, mas não encontramos marcas que validem esta versão. Provavelmente a causa da morte foi por algo que a mumificação ocultou, como uma infecção.
Kherima foi protagonista de uma série de cultos em meados do século passado. Um deles foi em 1955, logo após a morte de Carmen Miranda, nos EUA. O corpo da artista veio embalsamado para o Rio.
Centenas de pessoas entenderam que ela fora “mumificada” e visitaram o Museu Nacional, levando flores à múmia. Enquanto isso, o corpo da Pequena Notável era exposto sem tumultos no Palácio do Catete, então sede da Presidência da República.
Na mesma década, o professor Victor Staviarski, membro da Sociedade de Amigos do Museu Nacional, começou a ministrar cursos de egiptologia e escrita hieroglífica na instituição.
Staviarski recorria à hipnose e levava médiuns para as aulas. A ópera “Aida”, de Giuseppe Verdi, também contribuía para a criação de um ambiente místico.
O professor também reforçou o corpo docente de um curso noturno de Ciências Herméticas — que, entre outras disciplinas, contava com Magia, Forças da Natureza e Astrologia Esotérica.
— No curso de História, Staviarski dava aulas no auditório, com mais de 100 pessoas, e promovia sessões especiais ao lado da múmia. Participei de uma delas em que o professor pôs uma máscara dourada na cabeça dela — conta a arqueóloga Ângela Rabello, do Museu Nacional.
— Alguns alunos sentiram o odor de rosas, mas não foi o meu caso. Um senhor teve um transe durante a aula e se viu navegando em um barco egípcio junto à múmia.
Em reportagens publicadas na década de 1960, Staviarski assegurou que mais de 100 pessoas entraram em transe em frente à Kherima.
Um grupo de alunos queixou-se com a coordenação do Museu Nacional devido à promoção de “experiências parapsicológicas relacionadas com a exposição de egiptologia”.
Brancaglion também viu alunos que sentiram um “mal súbito” quando participavam de uma palestra ao lado de Kherima.
— Curiosamente isso só acontece com esta múmia — diz.— Talvez seja porque sua aparência é mais humana.
A bioarqueóloga Sheila Mendonça, também ex-aluna de Staviarski, defende o professor.
— Hoje seus métodos são considerados controversos, mas, à época, ninguém sabia como conservar uma múmia. Por isso havia o incentivo de que ela fosse tocada durante as aulas — lembra. — A hipnose estava na moda, e Staviarski a usava para impressionar os alunos.
Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Escola Nacional de Saúde Pública, Sheila acompanhou a tomografia de Kherima.
Segundo a pesquisa, a suposta princesa egípcia teria entre 18 e 20 anos e cabelos curtos e escuros, diferentes dos egípcios.
Seu crânio é semelhante aos dos mediterrâneos, e não ao dos africanos. O cérebro e as vísceras foram retirados durante a mumificação. Os dentes, no entanto, foram preservados. Não havia sinal de doenças.
— Vimos materiais que envolviam o corpo, dando volume às mamas, quadril e abdômen, reforçando o contorno feminino da múmia — destaca Sheila.
— As unhas estavam pintadas e é fácil identificar seus mamilos. Ela, assim como outros membros de sua tumba, tem fraturas nos braços, um processo que deve ter ocorrido durante a preparação do corpo. Os pés foram danificados décadas atrás, quando a peça já estava no museu.
A corrida pelo ‘pó de múmia’
De acordo com Sheila, as múmias começaram a integrar o imaginário europeu no século XVIII. A expansão colonial e o contato com povos estrangeiros mudou os valores do Velho Mundo.
— A Europa passou por um relaxamento de costumes. A morte era vista como algo cada vez mais próximo, uma ideia incentivada pela Igreja e respaldada pelas epidemias de peste — explica a bioarqueóloga.
— Mais pessoas foram ao Egito e o fascínio com as múmias também cresceu. Elas representam um estágio intermediário entre vida e morte. São corpos que não desapareceram, não completaram um processo natural.
As múmias apavoravam a população, mas, segundo Brancaglion, também representavam um negócio lucrativo.
Elas eram destruídas em busca de joias e amuletos. Cabeças, pés e mãos eram vendidos como souvenires; o tronco, despedaçado, rendia um pó usado para a fabricação de tintas, principalmente, de medicamentos. Tratava-se de um artigo comum nas farmácias europeias no século XIX.
Fonte: O Globo Online
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