sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Há 300 milhões de anos já existiam animais que regeneravam membros





As lagartixas fabricam novas caudas quando as perdem, mas são as salamandras que conseguem regenerar realmente os membros. Essa capacidade surgiu na evolução antes das salamandras e poderá ter importância para a medicina.


O cirurgião Curtis Connors perdeu o braço direito na guerra devido aos ferimentos causados por uma explosão. Quem conhece o universo dos super-heróis sabe o que se seguiu. Obcecado pela capacidade regenerativa dos répteis, o cientista usou em si um soro de DNA réptil para fazer voltar a crescer o seu membro. O braço regenerou-se. 
 
 
Mas Connors transformou-se no lagarto, um vilão que persegue o homem-aranha desde 1963. Esta criação da Marvel é um produto do seu tempo. A descoberta da molécula de DNA, fundamental para a genética, tinha então dez anos. O soro do lagarto é uma apropriação fantasiosa do conceito, em que o DNA do réptil daria a capacidade de regenerar um membro perdido.


Uma descoberta vem agora dar uma reviravolta a este tema. Uma equipe de cientistas identificou a regeneração de membros em fósseis de animais com quase 300 milhões de anos, segundo um estudo foi publicado na revista Nature. 
 
 
Para os cientistas, poderá restar um vestígio deste mecanismo molecular de regeneração no DNA de todos os tetrápodes, o grupo de animais onde estão os anfíbios, répteis, aves e mamíferos.


Os humanos conseguem reconstruir o fígado se ele for parcialmente destruído. Para isso, há multiplicação das células e uma organização precisa dos vários tecidos que compõem aquele órgão. É uma obra complexa. 
 
 
Mesmo assim, o novo fígado não recupera a antiga forma. Algo que é fulcral na regeneração de um membro: um braço depende da sua forma para ser um braço. E, uma vez perdidos, um braço ou uma perna ficam perdidos para sempre.


Mas a natureza está aí para mostrar alternativas. As lagartixas – os répteis que poderão ter inspirado o vilão lagarto – perdem facilmente a cauda quando são apanhadas por um predador. 
 
 
E volta a crescer não uma cauda mas uma pseudo-cauda: continua a cumprir uma função de equilíbrio, mas a arquitetura interna é diferente, pois, em vez de haver uma coluna vertebral, forma-se cartilagem.


A verdadeira capacidade de regeneração cabe às salamandras e aos tritões: os únicos tetrápodes que voltam a reconstruir uma cauda ou uma pata com todos os tecidos internos. 
 
 
Estes animais pertencem à família Salamandridae e não são répteis, são anfíbios, como os sapos e as rãs (no fundo, o vilão lagarto deveria ser afinal um maléfico tritão). Como mais nenhum tetrápode vivo tem esta capacidade, a visão clássica da biologia defendia que esta característica tinha surgido apenas na evolução dos “Salamandridae”.


O novo trabalho publicado na Nature contradiz esta perspectiva. A equipa de investigadores do Instituto para a Evolução e para a Ciência da Biodiversidade de Leibniz, na Alemanha, foi estudar fósseis de tetrápodes que viveram há cerca de 300 milhões de anos, 80 milhões de anos antes de as salamandras surgirem no registro fóssil.


“Os fósseis usados no nosso estudo representam membros de diferentes grupos de anfíbios da era Paleozóica”, diz ao PÚBLICO Nadia Fröbisch, uma das autoras do trabalho. 
 
 
A equipe estudou espécies de Temnospondyli, entre as quais está um antepassado antigo das salamandras, e espécies de Lepospondyli, um grupo que está mais próximo dos amniotas – os tetrápodes completamente terrestres, que deram origem aos répteis, aos mamíferos e às aves.


Olhando para aqueles fósseis, a equipa encontrou características semelhantes às que se encontram nos membros regenerados das salamandras e dos tritões. 
 
 
“Quando [nas salamandras] o membro foi muito dilacerado ou a cicatrização da ferida não correu bem, o membro regenerado mostra uma combinação de patologias que é muito característica. Encontramos este tipo de patologias num dos Temnospondyli”, explica Nadia Fröbisch.


Por outro lado, nas espécies de Lepospondyli estudadas, os cientistas notaram marcas de regeneração ao compararem a pata traseira esquerda com a pata traseira direita. 
 
 
“Num dos lados, os ossos dos membros estão bem diferenciados e ossificados de acordo com o estádio de desenvolvimento de todo o fóssil, mas do outro lado só os ossos da perna junto ao tronco estão bem desenvolvidos, enquanto os ossos mais distantes se encontram mais imaturos, indicando que estão em regeneração”, acrescenta a cientista.


Para Nadia Fröbisch, esta descoberta é importante para situar a característica dos Salamandridae na história evolutiva dos vertebrados. 
 
 
“A regeneração não é específica das salamandras, estava disseminada no passado evolutivo. Isto pode influenciar os estudos para descobrir os mecanismos moleculares que controlam a regeneração das salamandras, já que esta descoberta indica que estes fatores não são específicos delas. Existiam mecanismos moleculares presentes nos tetrápodes envolvidos na regeneração que ainda podem estar presentes em tetrápodes vivos, incluindo nos humanos”, defende a cientista, acrescentando que este conhecimento pode vir a ser usado “para desenvolver possíveis tratamentos e aplicações futuras na medicina humana”.


Seguindo a lógica da Marvel, podemos imaginar que, no futuro, a história do doutor Connors teria um final feliz: em vez de ter de recorrer ao DNA de outro animal, transformando-se num monstro, poderia reutilizar o seu próprio DNA de outra maneira para fazer regenerar o seu braço, mantendo-se humano.


Mas voltando à evolução e às dúvidas dos cientistas, não se sabe por que é que a grande maioria dos tetrápodes deixou de ter esta capacidade aparentemente tão vantajosa. “Parece contra-intuitivo”, diz-nos a cientista. O custo energético alto ou a incompatibilidade com outras características importantes podem explicar a sua perda, considera. 
 
 
“As salamandras são especiais em muitos aspectos, como o seu metabolismo ou o fato de terem as maiores células entre os vertebrados vivos”, acrescenta Nadia Fröbisch. “Se calhar a capacidade regenerativa nunca foi selecionada negativamente nas salamandras e por isso ainda está presente.”




Fonte: Público

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