"Quer segurá-lo? Pode segurá-lo. Só não o deixe cair." O paleontólogo Neil Shubin estende um pedaço de rocha vermelha que acaba de retirar de uma caixa de acrílico forrada com espuma.
Sem ousar trazê-la para muito longe da gaveta onde fica guardada, aproximo o olho da peça. E os contornos do osso ficam claros.
Ali, na minha mão, está um pedaço da pata dianteira do Tiktaalik roseae, um dos vertebrados fósseis mais importantes do mundo.
O próprio ato de pegar o osso fossilizado de 375 milhões de anos é possível graças ao Tiktaalik. Afinal, esse peixe que habitou a região que hoje é o Ártico canadense foi, por assim dizer, o inventor daquilo que se transformaria nas mãos e nos pés dos seres humanos.
Antes dele, tudo o que havia nos animais eram nadadeiras. O Tiktaalik roseae criou as patas.
Descrito em 2006 na capa da revista "Nature" por Shubin e seus colegas Farish Jenkins e Ted Daeschler, o fóssil sacudiu o universo da paleontologia.
Tratava-se de um perfeito elo perdido: um animal que mistura características de peixe e anfíbio e que pode ajudar a explicar como os animais conquistaram a terra firme, no Período Devoniano (entre 408 milhões e 362 milhões de anos atrás).
Assim como o Tiktaalik, o laboratório de Shubin na Universidade de Chicago, nos EUA, é um híbrido estranho.
Ali, fósseis, moldes de fósseis e uma imensa prancheta para desenhar ossos dividem espaço com microscópios, uma máquina de amplificação de DNA, uma centrífuga e várias outras traquitanas de biologia molecular.
As pesquisas desenvolvidas ali têm um objetivo nada modesto: "Queremos entender a origem dos vertebrados terrestres e como os organismos surgem", diz o pesquisador.
Para isso, ele seus colegas vasculham ao mesmo tempo os dois grandes conjuntos de evidências à disposição dos cientistas: os fósseis das criaturas extintas e o DNA das atuais.
A poucos metros de onde os restos mortais do Tiktaalik são mantidos trancados --por razões de segurança, depois que Shubin passou a receber ameaças por telefone de criacionistas furiosos--, um brasileiro se dedica a desvendar a parte genética dessa equação: o embriologista paraense Igor Schneider, 28, aluno de pós-doutorado de Shubin.
Schneider é um especialista em evo-devo, ou evolução do desenvolvimento. Essa área da biologia se dedica a estudar a maneira como os embriões se desenvolvem em busca de marcas registradas da evolução.
"É a área do futuro", conta o pesquisador. "Hoje finalmente a gente tem tecnologia para responder às perguntas relevantes --como surgiram as grandes estruturas na evolução, por exemplo."
Na semana passada, Schneider conduziu um experimento para desvendar a origem de uma dessas grandes estruturas: os chamados apêndices pareados, que resultaram nas barbatanas e nas patas.
Ele foi procurá-las num lugar insuspeito: o corpo da lampreia, um peixe extremamente primitivo que não tem nadadeiras pareadas.
O cientista quer saber se o "modelo básico" dos vertebrados, do qual a lampreia é o principal representante vivo --ela consiste basicamente de um tubo com uma coluna no meio--, já possuía os genes que dão origem às barbatanas dos peixes e aos braços e às pernas dos mamíferos.
Para isso, ele injetou em embriões de lampreia uma sequência de DNA que ele isolou do paulistinha, um peixe comum de laboratório, e que, acredita, regula a ativação do gene Shh, responsável pela produção dos apêndices.
Essa sequência de DNA, conhecida como ZRS, não traz a receita para a fabricação de nenhuma proteína.
Poderia ser facilmente descartada como "lixo" genômico, não fosse um detalhe intrigante: ela tem trechos virtualmente idênticos em animais separados por centenas de milhões de anos de história, como humanos e tubarões.
É como se a evolução a tivesse mantido conservada de propósito, por um bom motivo.
E o motivo, acredita Schneider, é ordenar ao Shh que produza membros pareados. "Só seríamos capazes de verificar isso procurando sinais de membros num bicho que não tem membros", diz.
Fonte: Folha Online
Nenhum comentário:
Postar um comentário