sábado, 6 de março de 2010

Arraias invadem rios de São Paulo via lago de Itaipu e ferem pescadores

Amputação preventiva - Exemplar de 'Potamotrygon motoro' com a cauda mutilada. Pescadores costumam amputar o animal na expectativa de reduzir os acidentes, em uma prática conhecida como 'pesca negativa'; o ferimento, no entanto, prejudica a natação das arraias e uma de suas técnicas de defesa, que é se enterrar rapidamente (Foto: Cristiano Burmester / Unesp Ciência ed.6)


Antes, Sete Quedas restringiam espécies à bacia Paraná-Paraguai. Parentes dos tubarões, elas já chegaram aos rios Paranapanema e Tietê.

O G1 publica abaixo reportagem da 6ª edição da revista “Unesp Ciência”, lançada nesta sexta-feira (5).

Você vai conhecer o trabalho de pesquisadores que mergulham no rio Paraná para desvendar a ecologia da infestação de arraias que aproveitaram o lago da hidrelétrica de Itaipu para proliferar e ocupar outros ambientes, ameaçando banhistas e pescadores. Clique aqui para ter acesso ao conteúdo completo da edição.

Quando a luz apagou em boa parte do Brasil em 11 de novembro do ano passado, o pescador Alfredo Alves Cruz, de 32 anos, estava a ponto de desespero em sua casa, com o pé latejando de dor.

Mais cedo ele tinha tomado uma ferroada de arraia quando pescava às margens do rio Paraná, em Três Lagoas (MS), e naquele momento tentava, com água quente, aplacar o sofrimento.

Há uma certa ironia da natureza em ele ter se acidentado em um dia de apagão, visto que o animal que o feriu só estava ali justamente porque 27 anos antes era inundada uma imensa área no Estado do Paraná para abastecer a maior usina hidrelétrica do mundo – Itaipu.

As famosas Sete Quedas de Guaíra, que submergiram em outubro de 1982, historicamente serviram como barreira que impedia que as arraias, comuns no baixo e médio Paraná, subissem para o alto rio.

Com o lago criado, esses peixes parentes dos tubarões encontraram um novo caminho e rapidamente colonizaram uma região que até então desconhecia sua existência.

Há milhões de anos, arraias marinhas do Caribe se adaptaram para viver nos rios da Amazônia. Dali, pelo Mato Grosso, chegaram ao Pantanal e desceram até a bacia Paraná-Paraguai, onde estavam restritas.

Agora, pelo rio Paraná elas já chegaram até Ilha Solteira, a mais de 350 km do ponto inicial de dispersão (Foz do Iguaçu). E também alcançaram os rios Paranapanema e Tietê.

Quinze dias depois do acidente, quando visitamos a região, Cruz ainda reclamava do pé, que, se não chegara a necrosar com o veneno – a água quente amenizou o problema –, infeccionou pela ação de bactérias. O pescador só pensava que nunca mais queria ver aquele bicho pela frente.

Mas é melhor ele não contar com isso se quiser evitar um novo sofrimento. Afinal, não se deparar mais com o peixe naquela região é uma possibilidade altamente remota, alertam os pesquisadores Vidal Haddad Jr., dermatologista da Faculdade de Medicina da Unesp, campus de Botucatu, e Domingos Garrone Neto, biólogo que completou doutorado sobre os animais em 2009 na instituição e agora inicia o pós-doutorado na mesma área.

“O rio Paraná está coalhado de arraias, elas têm alimento de qualidade, não têm predadores naturais na região e os pescadores, por causa dos acidentes, têm preconceito e não comem sua carne. A tendência é que essa expansão só continue”, afirma Haddad.

Acompanhamos a dupla a Três Lagoas em uma de suas visitas regulares para monitorar a população de arraias e o impacto que essa invasão biológica vem tendo na saúde humana.

A cidade sul-mato-grossense fica em frente a Castilho (SP), na outra margem do rio Paraná, exatamente onde foi construída a Usina Hidrelétrica Engenheiro Souza Dias (Jupiá).

São seis horas de carro a partir de São Paulo – que viram cinco após atravessarmos a ponte sobre o rio, por conta do fuso horário.

Enquanto Garrone investiga a ecologia do animal e a história natural de sua expansão, Haddad trabalha com educação ambiental, prevenção, tratamento e pesquisas em torno do veneno.

Eles escolheram a cidade como base dos estudos por contarem ali com uma unidade da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, que os apoia nas pesquisas de campo e na logística de laboratórios.


Risco do desconhecido


A relação entre arraias e seres humanos nunca foi muito boa. O animal é frequentemente associado a ferimentos de pescadores e ribeirinhos, principalmente na região Norte do país, onde esses peixes vivem há milhares de anos e são bastante comuns – e a população está mais do que acostumada com eles.

É de se imaginar o que aconteceria com comunidades que nunca tinham visto o bicho antes. Foi o que levou Haddad há cerca de dez anos a começar a prestar atenção nas cidades com praias fluviais no rio Paraná.

Um levantamento feito por Itaipu logo após a submersão das Sete Quedas mostrara que as arraias tinham subido.

Antes da formação do lago, a fauna aquática da região de Foz do Iguaçu tinha 113 espécies de peixes, depois do alagamento, 76 novas espécies surgiram no local, entre elas três de arraia. Mas não foi feito nenhum monitoramento posterior para saber se elas estavam se movendo e para onde.

“Naquela época ouvi os primeiros relatos sobre a ocorrência desses animais no Estado de São Paulo. Fiz coletas em Presidente Epitácio com a ajuda de pescadores, ao mesmo tempo em que comecei a procurar por acidentes.

O local tinha muitas arraias, o que nos levou a crer que o rio Paraná estava todo colonizado, pelo menos até Epitácio. Alertei em 1999 que a expansão deveria continuar por São Paulo, entrando pelo rio Tietê, e é o que está acontecendo agora”, afirma.

Apesar de não serem agressivas e não atacarem as pessoas, as arraias reagem com uma chicotada da cauda, onde fica o ferrão, quando alguém pisa ou esbarra nelas.

No ano passado, o Instituto Butantan estimou que os acidentes com esses peixes estão entre os mais comuns entre aqueles que envolvem animais peçonhentos no Brasil, principalmente na região Norte.


Não agressoras - Arraias se defendem com o ferrão (Foto: Cristiano Burmester / Unesp Ciência, ed.6)


Na região do Alto Paraná ainda não há estatística sobre o número de acidentes, mas a percepção dos pesquisadores é que eles vêm crescendo.

De fato, quando Haddad avaliava o ferimento de Alfredo Cruz, três outros pescadores – num grupinho de cinco – mostravam as cicatrizes de ferroadas antigas.

“Por enquanto, pelo menos, parece que os acidentes estão restritos aos pescadores. O que preocupa é na hora que começarem a acontecer nas prainhas de lazer”, afirma o dermatologista.

Para tentar antever os riscos que poderiam decorrer dessa interação arraias-gente, Garrone Neto começou a investigar os animais da região.

Ele já conhecia o impacto que os peixes têm nas populações ribeirinhas da Amazônia e, assim como Haddad, imaginou que a situação tendia a ser pior num local desprevenido.

“Vi no Norte do país que os acidentes eram frequentes e, por acometerem quase sempre os membros inferiores das vítimas, eram de grande interesse ocupacional e também de saúde pública.”

Isso aliado ao fato de haver poucos estudos sobre a ecologia das arraias – ninguém ainda as havia observado em seu habitat – foi o motivo que o pesquisador precisava.

A partir de 2004 ele começou a “cair nas águas” da região do Alto Paraná para realizar os primeiros estudos subaquáticos conhecidos sobre esses animais.

O objetivo era descobrir como eles vivem, se reproduzem, se alimentam etc. Quando estivemos em Três Lagoas ele contou que boa parte dessas questões já foi respondida com os mergulhos, coletas e análises de conteúdo estomacal, mas algumas perguntas dependem agora da próxima etapa da pesquisa, que envolve o uso de telemetria – a inserção de chips nos peixes para que seja possível acompanhar a sua locomoção.

O Sol já estava alto quando entramos no barco de Marcos Teixeira da Silveira, o Marquinho, pescador de 35 anos que acompanha Garrone desde o início da pesquisa.

Equipamentos de mergulho e todas as “tralhas” para a pesquisa costumam lotar a embarcação, mas nesse dia vamos apenas observar.

O pesquisador submeteu o projeto de pós-doutorado à Fapesp e ainda espera a liberação da verba para compra do equipamento de telemetria.


Navegação via eclusa


O rio corre calmo na altura de Jupiá e não há pescadores à vista, por conta do período de defeso para a reprodução dos peixes.

A barragem imponente, no entanto, nos lembra por que estamos lá. Depois que as arraias ganharam um mundo novo para colonizar com a submersão das Sete Quedas, elas contaram com a ajuda de outras interferências humanas para chegar tão longe rio acima e tributários.

Usinas construídas ao longo da bacia do Paraná, como a de Porto Primavera (em Rosana, SP) e a própria Jupiá, facilitaram o trânsito dos peixes através das eclusas construídas para possibilitar o transporte hidroviário.

Quando navios e barcos transpõem os desníveis dos rios, as arraias acabam aproveitando a carona.

A navegação pelo Tietê também funciona do mesmo modo (quem já fez excursão para Barra Bonita deve se lembrar), o que pode permitir que as arraias entrem cada vez mais para o centro do Estado de São Paulo, onde há muitas praias.

“Queremos descobrir também o que deve acontecer acima de Ilha Solteira. Lá elas já chegaram, mas a usina não tem eclusa, então, em teoria, é o fim da linha”, afirma Garrone. Mas há uma brecha.

As turbinas ligadas sugam os animais que estão no rio, então, de tempos em tempos os funcionários “salvam” os que ficaram presos nelas.

“Mas pode ocorrer de alguém jogar uma arraia ou outra para cima, em vez de para baixo, favorecendo a transposição da barragem”, complementa.

“Essa história que estamos documentando há cinco anos é o único caso conhecido no mundo de elasmobrânquios invasores, ou seja, de tubarões ou arraias que chegaram a um lugar onde eles não ocorriam originalmente”, explica.

Tais observações vêm sendo divulgadas por Haddad e Garrone já há alguns anos em revistas como "Biota Neotropica" e o "Boletim da Sociedade Brasileira de Ictiologia".

No artigo mais recente, que deve sair em breve na "Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical", eles escrevem: “Pelas arraias estarem colonizando áreas densamente povoadas e ampliando sua área de distribuição a cada ano, é de se esperar que sua interação negativa com humanos se intensifique, provocando alterações importantes no perfil epidemiológico dos acidentes por animais peçonhentos ocorridos no sudeste brasileiro.”

De acordo com relatos obtidos pela dupla com ribeirinhos de todo o Alto Rio Paraná, as arraias começaram a se instalar na área em 1993.

Marquinho conta que um primo seu foi um dos primeiros a “conhecer” a novidade em Três Lagoas em meados daquela década. “Ele mergulhou de barriga e tomou a ferroada.

Ninguém sabia que bicho era aquele. Ele veio gritando de dor e quando chegou no barraco, apagou”, lembra.

Hoje Marquinho sabe muito bem como são as arraias, distinguindo inclusive as espécies, como pudemos perceber logo que paramos o barco para, enfim, entrar no Paraná.

Enquanto Garrone e o fotógrafo Cristiano Burmester se preparavam para o mergulho, o pescador caiu na água com uma rede, flutuou um pouco com a cabeça submersa para logo em seguida afundar completamente.

“Agora ele só volta com uma arraia na mão”, comenta Haddad, o que não leva nem 30 segundos para acontecer.

Ele sobe à tona com um exemplar de Potamotrygon falkneri, uma das duas espécies observadas na região (a terceira que subiu para o Alto Paraná ficou restrita ao Parque Nacional de Ilha Grande). Trata-se de um jovem macho, com um disco de cerca de 25 centímetros de diâmetro.


Coalhado de arraias - Marquinho mostra um espécime macho de 'P. motoro' retirado do fundo do rio apenas 20 segundos após o mergulho (crédito: Cristiano Burmester / Unesp Ciência, ed. 6)

Com um alicate Domingos segura o ferrão e com uma esponja segura o peixe por baixo para fora d’água. Na mão do pesquisador, o belo animal provoca admiração. “O ferrão é retrosserrilhado, entra e sai rasgando a pele.

Ele é recoberto por um muco rico em células glandulares que têm toxinas. Além da estrutura rígida que compõe o ferrão, é isso que faz o estrago quando entra”, explica Domingos.

Na sequência Marquinho trouxe outro macho, dessa vez da espécie Potamotrygon motoro. Com bolinhas alaranjadas, ela é mais bonita que a anterior – e esse exemplar específico é ainda mais perigoso, tem dois ferrões.

“Se tomar uma dessas, vai ver estrelas”, comenta Haddad. Ele explica que em caso de acidente, a recomendação é jogar água quente não escaldante.

A descoberta de por que isso funciona é um dos resultados do trabalho na região. “Em todo o mundo recomendava-se o uso da água quente [nos acidentes com as arraias marinhas] acreditando-se que ela desnaturaria o veneno”, diz.

“Mas a gente provou que não. Injetando o veneno em animais de experimentação, percebemos que os vasos sanguíneos se contraem, daí a dor e a necrose. A água quente faz uma vasodilatação, por isso que ajuda e alivia a dor”, afirma o dermatologista.


‘24 horas’ dentro d’água


Para conhecer os hábitos do animal, e assim poder informar a população sobre como se prevenir, Domingos passou muitas horas submerso ao longo de cinco anos de pesquisas.



“Queria saber, por exemplo, em qual horário do dia elas são mais ativas”, conta. “Mas para isso precisaria ficar 24 horas dentro d’água, o que é impossível.”

Ele então dividiu um dia em vários. No primeiro mergulhava das 5h às 8h e depois das 16h às 20h. No dia seguinte, ficava das 9h ao meio-dia, e das 21h à meia-noite. Cada dia um horário diferente para tentar cobrir o dia inteiro.

“Vi que elas nadam, vão à superfície, se deslocam junto à vegetação, mas o hábito é predominantemente bentônico.

Elas passam quase todo o tempo em associação com o substrato”, explica. Elas ficam escondidas, só com os olhinhos para fora. E é aí que mora o perigo.

“É um animal que confia demais na camuflagem e por isso acaba sendo pisoteado. Ele acha que as pessoas não vão machucá-lo porque não o estão vendo ali, mas é por isso que elas às vezes esbarram nele.

Quando as arraias sentem uma estocada no dorso têm uma reação igual a quando tomamos uma pisada no pé: tirar rápido.

Ela ferroa e vai embora. Não ataca ninguém, é defesa.” Por isso um cuidado ao entrar num rio que tenha arraia é arrastar os pés no fundo. Ela percebe o movimento e vai embora.

“A prevenção é fácil, já controlar a população é mais difícil. Ninguém pesca, ninguém come”, diz.

E se conta com bastante comida e água de boa qualidade, ela só tende a crescer, e os indivíduos de borda, mais jovens, saem à procura de novos ambientes.

Com a telemetria, que Domingos espera começar a implantar nos próximos meses, será possível descobrir quantos animais têm de existir numa população para ela começar a se expandir.

“Também não sabemos quanto tempo as arraias vivem, quanto podem se deslocar ao longo da vida e com qual velocidade.

Esperamos que esses dados possam trazer dicas de como controlá-las. Porque uma ferroada dessas é de perder a noção de dor.”


“Unesp Ciência” é uma publicação da Universidade Estadual Paulista que traz reportagens sobre os grandes temas da ciência mundial e nacional e sobre as pesquisas mais relevantes que estão sendo realizadas na instituição, em todas as áreas do conhecimento.


Fonte: G1


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