Pesquisadores da Índia e da Itália anunciaram ter descoberto duas formas de água líquida que os cientistas há muito suspeitavam existissem a temperaturas inferiores à de congelamento normal da água.
A água sem dúvida nenhuma é um líquido estranho. Ao contrário da maioria dos demais líquidos, ela se torna menos densa ao se congelar e sua maior densidade é atingida não quando está mais congelada (a zero grau, pouco antes de congelar) mas a uma temperatura de quatro graus positivos.
Trata-se de apenas duas das inúmeras propriedades anômalas da água, algumas das quais são cruciais para determinar o seu comportamento no ambiente natural.
Por exemplo, porque gelo flutua na água, os lagos em geral não se congelam por inteiro em uma massa sólida, nos meses do inverno, começando do fundo em direção à superfície.
Esse comportamento anômalo resulta da ação de elos químicos fracos, conhecidos como elos de hidrogênio, que promovem a adesão de moléculas de água em forma de líquido.
Quando a água está em forma de gelo, esses elos mantêm as moléculas com uma certa separação, o que deixa espaço vazio considerável entre elas.
Em 1992, Gene Stanley, da Universidade de Boston, em Massachusetts, e seus colegas executaram simulações em computador sobre o comportamento da água, e os resultados do trabalho sugeriam que esses elos de hidrogênio poderiam produzir dois tipos diferentes de líquido caso a água fosse refrigerada a ponto considerável e ao mesmo tempo comprimida sob alta pressão.
Em uma das formas de líquido criadas, os elos de hidrogênio criariam uma rede esparsa e bastante aberta de moléculas conhecida como água LDL, ou líquido de baixa densidade.
Na segunda, as moléculas de água se concentrariam mais, ao custo de romper alguns dos elos de hidrogênio e isso formaria água em forma de líquido de alta densidade, ou HDL.
Stanley e seus colegas constataram por intermédio das simulações conduzidas que os dois tipos de água em forma líquida variavam de uma para a outra forma por meio de uma abrupta "fase de transição", como a transição entre congelamento e derretimento que separa o gelo e a água líquida comum.
De acordo com essa interpretação, anomalias como o fato de a maior densidade da água ser atingida à temperatura de quatro graus positivos são um reflexo da mesma competição entre estados densos e menos densos que resulta na existência da fase de transição, em temperaturas muito mais baixas.
Agora, Dino Leporini, da Universidade de Pisa, na Itália, e seus colegas no Instituto Indiano de Ciência, em Bangalore, dizem ter observado as duas fases da água que a equipe de Stanley propôs hipoteticamente em 1992.
A alegação vem dividindo os especialistas. Stanley classifica o trabalho dos italianos e indianos como "excepcional", mas Pablo Debenedetti, especialista em física dos líquidos na Universidade de Princeton, em Nova Jersey, afirma que os resultados obtidos pelos pesquisadores, embora interessantes, "claramente não são a prova há muito procurada" de que a água apresenta dois estados líquidos mutuamente conversíveis sob determinadas condições de temperatura e pressão.
Gelo, talvez gelo
Parte do problema é o fato de que as duas fases hipotéticas propostas para a água são difíceis de investigar de forma experimental porque a água tende a se congelar antes que seja possível refrigerá-la a temperaturas nas quais as duas formas poderiam existir, inferiores a 75 graus negativos.
Em 1998, Stanley e o físico Osamu Mishima, do Instituto Nacional de Pesquisa de Materiais Inorgânicos, em Tsukuba, no Japão, registraram um instigante vislumbre da chamada transição entre estado líquido e estado líquido, quando descongelaram minúsculas partículas de gelo por meio de técnicas de compressão.
Posteriormente, em uma série de experiências conduzidas em 2007, Francesco Mallamace, da Universidade de Messina, na Itália, e seus colegas, reportaram sinais de dois tipos de água super-refrigerada e dotada de poros de sílica tão estreitos que o líquido se tornava incapaz de congelamento.
Mas essas observações foram contestadas por outros pesquisadores, segundo os quais o comportamento da água poderia ter sido alterado pela superfície porosa da sílica.
Leporini e seus colegas acreditam que tenham contornado essa dificuldade ao confinar a água dentro do gelo. Utilizaram uma técnica conhecida como ressonância de oscilação eletrônica, para estudar a mobilidade de moléculas de água no interior de minúsculos bolsões de líquido aprisionados entre cristalitos de gelo em temperaturas da ordem de 183 graus negativos.
Os pesquisadores não medem o movimento da água diretamente; em lugar disso, observam os movimentos de uma "sonda" orgânica conhecida como TEMPOL, que se movimenta mais lentamente caso a água se torne mais viscosa.
Leporini explica que esse método permite que os cientistas observem mais especificamente a água presente nos bolsões de líquido entre os grãos de gelo, porque a TEMPOL não penetra no gelo.
Os cientistas reportam que entre as temperaturas de 140 graus negativos e zero, é possível observar dois tipos de movimento "semelhante ao dos líquidos" pela sonda TEMPOL, o que presumivelmente reflete a presença de dois tipos de água nos bolsões de líquido aprisionados no gelo.
Um dos tipos de movimento é mais lento que o outro, e os pesquisadores interpretam essa observação como prova da presença de dois tipos distintos de água: a forma LDL, mais viscosa, e a forma HDL, mais fluida.
Vida sob o gelo
Debenedetti concorda em que os resultados parecem revelar dois tipos diferentes de água, cuja presença proporcional se altera à medida que a temperatura muda.
Mas ele não acredita que exista, até agora, qualquer prova de que esses dois tipos representem fases distintas da água como por exemplo os cubos de gelo flutuando em um copo de água.
Existe a possibilidade, afirma, de que a conversão mútua entre os dois tipos aconteça de maneira gradual, e não abrupta.
Austen Angell, especialista em água da Universidade Estadual do Arizona, em Tempe, encara os resultados com ainda mais ceticismo.
Da mesma maneira que a água do mar exclui o sal ao se congelar na forma de gelo, ele acredita que os pequenos veios de água entre os cristais de gelo possam conter toda espécie de impureza.
"O líquido que os pesquisadores estão investigando não é água pura, mas sim a mistura que resta depois que a maior parte da água se cristalizou", ele afirma.
A composição desse líquido remanescente é desconhecida. Meu palpite informado seria o de que as observações se referem a uma sopa espessa de TEMPOL e de impurezas solúveis variadas.
Portanto, seria preciso fazer mais antes que se possa confirmar os resultados das observações.
Mas, caso eles procedam, Leporini vê implicações que se estendem bem além da compreensão das esquisitices da água.
Por exemplo, os bolsões de água super-refrigerada aprisionados em gelo poderiam abrigar vida nas regiões polares da Terra, ou até mesmo em outros planetas de clima mais frio.
Esse tipo de vida teria, então, de encontrar maneiras de se adaptar a dois tipos diferentes de água.
Fonte: Terra
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